segunda-feira, 1 de junho de 2009


MOACYR SCLIAR

Bilhete premiado. Premiado?

Ganhar milhões de dólares na loteria não era uma solução, era um problema, quem sabe até uma maldição na Austrália

Idosa encontra bilhete premiado depois de quatro anos.

Uma australiana de 73 anos recebeu agora o equivalente a R$ 3,1 milhões como prêmio de um jogo de loteria realizado há pouco mais de quatro anos. A mulher, uma fazendeira, tinha esquecido de conferir o bilhete, comprado em 2004. Apenas recentemente, ela o encontrara em uma gaveta, num envelope cheio de bilhetes antigos.

O marido ponderou que os bilhetes provavelmente não tinham validade, mas, mesmo assim, ela resolveu ir a uma casa lotérica para conferir. E aí a surpresa: um dos bilhetes estava premiado com 2 milhões de dólares australianos.

Apesar da surpresa, a vencedora não tem planos para o prêmio. "Na minha idade não há muito mais o que fazer, queremos é nos desfazer das coisas", disse ela. "O prêmio teria sido mais útil há alguns anos." Folha Online

SUA PRIMEIRA reação diante da notícia do bilhete premiado foi, naturalmente, de alegria.

Tratava-se de algo totalmente inesperado, um verdadeiro presente dos deuses. E não era pouco dinheiro, sobretudo para quem, como ela, estava acostumada a uma vida simples, sem luxos.

Saiu da lotérica excitada, já pensando na festa que daria naquela mesma noite, para o marido, os filhos, os netos, os vizinhos. Mal, porém, deu alguns passos, começou a pensar sobre o que fazer com aquela dinheirama toda.

A rigor, ela e o marido não precisavam de nada. Viviam modestamente, em sua pequena fazenda, criando ovelhas. Tudo conquistado com esforço, pois eram, ambos, de origem humilde. Mas se orgulhavam de nunca ter pedido favores a ninguém.

O que possuíam era resultado de seu trabalho. Agora ela estava ali, com um bilhete na mão que representava milhões de dólares. Como usar aquele dinheiro? Para comprar mais terras? Mas a fazenda tinha o tamanho que eles consideravam ideal, era uma propriedade que podiam administrar. Carro, móveis, eletrodomésticos?

Não precisavam disso. Outra casa? De maneira alguma. Adoravam a casinha em que viviam. Poderia, claro, distribuir o prêmio entre os filhos e netos, quem sabe entre os vizinhos.

Mas isso também seria um problema difícil de resolver. Como fazer este complicado cálculo? O filho mais velho tinha uma família grande, mas o filho mais jovem estava recém começando uma carreira como dentista e talvez precisasse de auxílio. E os vizinhos?

Como selecionar, entre eles, aqueles a quem presentear com uma quantia, grande ou pequena? Como fazê-lo sem descontentar muita gente? E as instituições de caridade? Não deveriam ser contempladas também? De repente ela estava angustiada. E de repente dava-se conta de que o bilhete premiado não era uma solução, era um problema, quem sabe até uma maldição. Poderia, claro, jogar o bilhete fora.

Mas, e os outros bilhetes? Os bilhetes que estavam ali, no envelope? Representavam um mudo questionamento, quem sabe uma acusação: por que, afinal, comprara tantos bilhetes? Que impulso, que ambição, que mágica ou supersticiosa crença a animara? "Quem sou eu, afinal?"

Chegou em casa e, sem falar com o marido, guardou os bilhetes numa gaveta. Que só abriria quando tivesse uma resposta. Resposta que, esta sim, seria para ela um verdadeiro prêmio.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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