sábado, 27 de junho de 2009



28 de junho de 2009
N° 16014 - DAVID COIMBRA


O mestre-sala dos mares

O bandido apanhava uma corda mediana de linho, atravessava-a de pequenas agulhas de aço das mais resistentes e, para inchar a corda, punha-a de molho, com o fim de aparecerem apenas as pontas das agulhas.

A guarnição formava e vinha, então, o marinheiro faltoso, algemado. O comandante, depois do toque de silêncio, lia a proclamação. Tiravam as algemas das mãos do infeliz e o suspendiam, nu da cintura para cima, no ferro que se prende à balaustrada do navio.

E então Alípio começava a aplicar os golpes. O sangue escorria. O paciente gemia, suplicava, mas o facínora prosseguia. Os tambores, batidos com furor, sufocavam os gritos. Muitos oficiais voltavam o rosto para o lado. A marinhada, possuída de repulsa e de profunda indignação concentrada, murmurava: “Isso vai acabar.”

Quem eram os homens supliciados por Alípio? Negros, quase todos. Negros. Ex-escravos ou filhos de escravos que encontravam na Marinha sua única chance de sobrevivência. Muitos viam-se conscritos à força, arrebanhados nas localidades pobres quando tinham 10 ou 12 anos de idade. Depois de alistados, passavam 15 anos em serviço, recebendo soldos miseráveis e punições desumanas.

Negros eles eram. Eis porque os açoitavam com tanta crueldade. A lei brasileira só permitia 25 chibatadas, mas houve casos de faltas serem punidas com até 300. Ninguém reagia. Porque eles eram negros.

Conto isso para que se entenda a reação explosiva ocorrida no país devido ao caso Elicarlos versus Maxi López, dias atrás. Relembro: Maxi López teria chamado Elicarlos de “macaco” durante o jogo do Cruzeiro com o Grêmio. Não sei se é verdade, talvez não seja. Falo da reação. É positiva. Porque, agora, os negros reagem.

A primeira vez que reagiram, na história da República, foi justamente na época de Alípio. Na noite de 22 de novembro de 1910, um marinheiro havia sido condenado a levar 250 chibatadas no convés do Minas Gerais. Em meio ao martírio, ele desmaiou. Alípio continuou com o castigo.

Entre os marinheiros que assistiam à tortura estava o gaúcho João Cândido. Negro, alto, filho de ex-escravos, João Cândido era analfabeto, mas as viagens internacionais tinham lhe emprestado certo lustro. Aos poucos, começou a cevar a rebelião entre os marinheiros. Devia ser deflagrada no fim do mês, mas o castigo brutal que Alípio impôs ao seu colega antecipou tudo.

Naquela noite, o mais delicado creme da sociedade estava reunido nos salões do Clube da Tijuca, no Rio, para os festejos da posse do presidente Hermes da Fonseca. Em meio à apresentação da ópera Tannhauser, de Richard Wagner, um estrondo arrancou guinchos das damas e calou os instrumentos – um tiro de canhão fora disparado contra a Capital. A bala partira do Minas Gerais.

Era a Revolta da Chibata.

Depois de alguns dias ameaçando bombardear o Rio, os amotinados venceram. A punição pela chibata foi abolida e eles receberam anistia. Mas a traição estava preparada. Nos dias seguintes, o governo brasileiro engendrou sua vingança. Os marinheiros passaram a ser perseguidos, demitidos e presos. Assustados, reuniram-se na Ilha das Cobras para tentar se arregimentar. A Marinha aproveitou para bombardeá-los.

Mais de 500 morreram no ataque. Outras centenas viram-se enviadas ao degredo na Amazônia. João Cândido foi preso com outros 17 marinheiros. Na noite de Natal, os encarceraram numa cela minúscula com o chão coberto por água e cal. Ao amanhecer, 16 homens jaziam mortos. João Cândido sobreviveu para ser encerrado em um manicômio.

A mulher e a filha de João Cândido se suicidaram. Ele morreu em 1969. Em 24 de junho, completaria 129 anos. Na década de 70, João Bosco e Aldir Blanc teceram uma das mais belas composições da MPB em sua homenagem, O Mestre-Sala dos Mares. A ditadura militar não gostou da letra que tecia loas a um sublevado. Abaixo, a letra original, com as mudanças assinaladas:

Há muito tempo,

Nas águas da Guanabara,

O dragão do mar reapareceu,

Na figura de um bravo marinheiro,

A quem a História não esqueceu.

Conhecido como o Almirante Negro,

Tinha a dignidade de um mestre-sala,

E ao acenar pelo mar

Na alegria das regatas,

Foi saudado no porto

Pelas mocinhas francesas,

Jovens polacas

E por batalhões de mulatas!

Rubras cascatas

Jorravam das costas dos negros

Entre cantos e chibatas

Inundando o coração

Do pessoal do porão

Que a exemplo do marinheiro

Gritava: Não!

Glória aos piratas, às mulatas,

Às sereias!

Glória à farofa, à cachaça,

Às baleias!

Glória a todas as lutas inglórias

Que através da nossa História

Não esquecemos jamais!

Salve o Almirante Negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais

A censura pediu mudanças, e mudanças foram feitas. Só que os censores nunca se satisfaziam. Aldir Blanc tirava as referências ao sangue, à Marinha, e nada de os censores aprovarem. Até que ele perguntou:

– Mas o que é que vocês querem exatamente? E a resposta do censor, direta e lacerante como um golpe de Alípio:

– Sabe o que é? É essa história de negro, negro, negro...Como se vê, existe alguma razão para os negros acalentarem traumas no Brasil.

Nenhum comentário: