sexta-feira, 19 de junho de 2009



19 de junho de 2009
N° 16005 - DAVID COIMBRA


Toda a sensualidade do mocotó

Uma bela mulher em frente a um prato de mocotó é uma cena profundamente sensual. Em primeiro lugar, porque sempre foram raras as mulheres que comem mocotó, e cada vez há menos delas sobre a Terra. Na verdade, a quantidade de apreciadores de mocotó, homens e mulheres, diminui dia a dia. Nem entendo como aqueles restaurantes que só servem mocotó ainda sobrevivem na cidade.

Trata-se de um fenômeno da urbe: eles começam a vender mocotó em abril e param em novembro. Sete meses, só. No resto do ano, os restaurantes permanecem fechados e seus proprietários decerto ficam se esbaldando em turnês pela Europa, alimentando-se de sutis suflês e petit gateau. Tudo por conta do velho e pastoso mocotó.

Que aproveitem, pois não será eternamente assim. O mocotó está em extinção, como o mico-leão-dourado e a onça-pintada. Porque as pessoas agora não comem mais mocotó, ou feijoada, ou torta de bolacha. Não. Elas ingerem proteínas, carboidratos, glicose.

Elas se nutrem, entende? Lá vêm elas com aquelas chicórias, aqueles grãos-de-bico, bifinhos na chapa, refrigerantes dietéticos. Ah, elas só querem saber de pilates e de dormir depois da novela, elas vão ao terapeuta e correm na rua às oito da manhã. Cristo, há quem jante barras de cereal!

Agora pergunto: isso é vida? A vida sem fritura é uma vida que valha a pena ser vivida???

Essas pessoas, essas que têm ojeriza ao mocotó, elas são capazes de se aventurar? Não estou falando de pular de paraquedas ou de fazer rafting. Nada de aventura assistida. Estou falando das pequenas loucuras que podem ser cometidas no trivial dos dias, da fuga do trabalho no meio da tarde para uma cerveja à margem do rio, do sexo pecaminoso com a loira do sétimo andar, do filme às quatro da madrugada, de comer mocotó com vinho no almoço de quarta-feira, é disso que estou falando!

Eis por que uma bela mulher diante de um prato fumegante de mocotó é, mais até do que sensual, terno, meigo, romântico, é bucólico. Ela, linda, primaveril, fresca como uma manhã de maio, ela uma imperatriz, ela uma sílfide, ela e seu mocotó estão gritando que ali está uma mulher que não teme a vida, uma mulher capaz de rir de uma piada, que topa uma viagem planejada 15 minutos atrás, uma mulher que talvez até jogue palitinho, embora eu bem saiba que jogar palitinho talvez seja pedir demais.

É isso que é importante, é nisso que penso nesse inverno de rigores. Que a extinção do mocotó é o símbolo de uma sociedade bem-comportada, tão bem-comportada, que se torna incapaz de mastigar a fatia mais saborosa da vida, que é a da fruição do pecado, só possível se o homem tiver a grandeza de perdoar o erro, de esquecer a falha, de conviver com a diferença, de experimentar a novidade.

Só possível se existir no peito a qualidade que transforma um conjunto de seres humanos em civilização: a tolerância. Um prato de mocotó é também um prato transbordante de tolerância.

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