segunda-feira, 15 de junho de 2009


MOACYR SCLIAR

O camundongo tenor

Perto dele, Susan Boyle, a escocesa que um programa tinha revelado como grande cantora, era fichinha

Um gene que cientistas suspeitam que esteja envolvido no desenvolvimento da linguagem humana foi inserido em camundongos na Alemanha. Como resultado, os roedores demonstraram uma série de alterações vocais e de comportamento. Ciência, 1º de junho de 2009

AS PRIMEIRAS mudanças ocorridas no camundongo que tinha recebido o gene com características da linguagem humana foram surpreendentes. O bicho já não emitia os fracos guinchos característicos de sua espécie; pelo contrário, os sons que emitia eram altos e fortes, tão altos e tão fortes que faziam tremer os outros roedores.

E isso ainda não era nada comparado com o que estava por vir.

Aos poucos, os pesquisadores começaram a notar que as mudanças não se restringiam a isso, que o camundongo não apenas guinchava: ele agora tinha uma voz indiscutivelmente humana. Falava como uma pessoa do sexo masculino. Falava, não. Na verdade, cantava. E cantava muito bem, com uma excelente voz de tenor.

Árias como "Nessun Dorma", da ópera "Turandot", de Giaccomo Puccini saíam de sua garganta com a maior facilidade: "Nessun dorma!... Tu pure, o Principessa,/ nella tua fredda stanza/ guardi le stelle". Mas como teria sido isso possível?

O mistério foi esclarecido quando se soube que o anônimo doador -um humilde funcionário do laboratório- era cantor nas horas vagas.

Mas cantor apenas razoável. A mudança genética ocorrida no camundongo acompanhara-se de um verdadeiro milagre. Ele cantava todo o repertório do funcionário com voz excepcional. Perto dele, Susan Boyle, a escocesa que um programa de amadores tinha revelado como grande cantora, era fichinha.

A notícia se espalhou e logo apareceu no laboratório um famoso empresário, entusiasmado com a história do camundongo tenor. "Isto não pode ficar restrito a um instituto de pesquisas", disse ao diretor.

O mundo precisava conhecer aquele prodígio. Mais que isso: a enorme renda a ser proporcionada pelos concertos do camundongo poderia financiar a instituição, que, por causa da crise, lidava com enormes dificuldades.

Ainda assim o diretor estava indeciso. Temia ser acusado de mercenário, de ter utilizado uma originalíssima pesquisa como forma de ganhar dinheiro, mesmo que a grana fosse para finalidades nobres.

Reuniu a equipe, discutiram longamente e depois de uma apertada votação decidiram assinar o contrato que lhes era apresentado pelo empresário. Uma cláusula desse contrato dizia que o roedor ficaria sob a guarda do próprio empresário.
Infausto dispositivo.

Assinado o contrato, o empresário foi para sua casa, levando a gaiola com o camundongo tenor. Colocou-a na sala de visitas e, depois de deixar bastante queijo (da melhor qualidade) para o contratado, foi dormir, feliz.

Esperava acordar de manhã com o "Nessun Dorma". Mas isto não aconteceu. Reinava o maior silêncio no apartamento. Tomado por maus pressentimentos, o homem correu até a sala de visitas.

A gaiola estava vazia. Sua frágil portinhola tinha sido arrombada. Por quem? Por algum empresário rival? Não. A resposta encontrava-se ali mesmo.

Diante da gaiola, com ar satisfeito, estava o gato do empresário. Que, evidentemente, tinha feito uma lauta refeição. E acabara com os planos de seu dono.

O empresário espera que o gato, tendo incorporado o material genético do camundongo, transforme-se também num tenor. Mas isso, pelo jeito, não vai acontecer. O gato continua miando como todos os outros gatos. Um miado muito desagradável.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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