sábado, 27 de junho de 2009



28 de junho de 2009
N° 16014 - MOACYR SCLIAR


Vive la France

NA Faculdade de Medicina, tive um professor que era capaz de dar uma aula inteira em francês. Francês era também o primeiro manual que usávamos no curso médico, o tratado de anatomia de Testut-Latarjet. E era em francês que dizíamos frases célebres, como: Dans la médécine comme dans lamour, ni jamais, ni toujours na medicina, como no amor, nem sempre, nem nunca.

Medicina e amor, ciência e sentimento: a cultura francesa era um mundo, e não é de admirar a vasta influência que teve no Brasil e em outros países, através de cientistas, como Louis Pasteur, o pai da microbiologia, de artistas como Cézanne, de escritores como Balzac, Victor Hugo, Flaubert, de poetas como o Baudelaire de Fleurs du Mal, com aquele verso que sintetiza toda a angústia do fazer literário:

“Hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!” (800 mil referências no Google): sim, o leitor é um hipócrita, mas é também, para o poeta, “meu semelhante, meu irmão”: uma relação ambígua, torturante e inspiradora.

E havia ainda o aspecto político. Para minha geração de jovens esquerdistas, a revolução francesa de 1789 (que fará 220 anos no próximo 14 de julho) era tão importante quanto a revolução russa de 1917. Com a mesma emoção com que entoávamos o hino da Internacional comunista (“De pé, ó vítimas da fome”), cantávamos a Marselhesa: “Às armas, cidadãos/ formai vossos batalhões”. Uma tradição que se continuou em intelectuais como Jean-Paul Sartre, para nós um símbolo de coragem e de coerência.

Claro, nem todos os franceses eram Sartre; durante a guerra muitos colaboraram com os nazistas, incluindo o excepcional escritor Louis-Ferdinand Céline. Mas isso, para nós, era apenas a exceção que confirmava a regra. A França era a nossa pátria espiritual.

Sobretudo Paris. Ah, Paris era o imã que atraía milhares de jovens, sobretudo os artistas, os escritores, os poetas. A “lost generation” americana (Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound, John Dos Passos, T. S. Eliot, Gertrude Stein) ali passou boa parte dos “loucos anos vinte”. Para nós, conhecer, Paris era um sonho.

O Quartier Latin, a Torre Eiffel, o Marais, Montmartre, o Louvre, a Saint Chapelle, o Sena, a Rive Gauche, sem falar em lugares surpreendentes, como o cemitério dos animais em Asnières-sur-Seine, onde estão enterrados mais de 40.000 bichos de estimação: gatos, cachorros, coelhos, peixes, um leão, muitos deles em túmulos belamente decorados.

Paris foi durante muito tempo a capital do mundo e conserva ainda esse mágico encanto, coisa que este notável jornalista que é Fernando Eichenberg, e que lá mora, nos lembra periodicamente. Aliás, tivemos e temos grandes divulgadores da cultura francesa aqui em Porto Alegre, como os professores Jean Roche e Ketty Nahoum.

Voltando aos tempos de colégio: lembro o professor Lovato, do Júlio de Castilhos, recitando com emoção os versos de Alfred de Vigny, evocando a medieval batalha de Roncevaux, na qual morreu o guerreiro Roland: “Roncevaux! Roncevaux! dans ta sombre vallée/ L’ombre du grand Roland n’est donc pas consolée?”.

Não, no sombrio vale de Roncevaux, a sombra do grande Roland não encontra consolo. Ele sente muita falta da “douce France”, a França que acalentou os sonhos do nosso mundo.

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