sábado, 13 de junho de 2009


Lya Luft

Os vivos e os mortos

"Morrer não é ser deletado: aquele que aparentemente nos deixou está preservado no casulo de seu novo mistério, sem mais risco, doença ou tormentos"

Por mais que as notícias falem de crianças assassinadas com um tiro na cara e de mulheres grávidas estupradas; por mais que ao nosso lado, de todas as formas, se banalize a morte, sempre que ela nos atinge sentimos um grande abalo e fundo estranhamento.

Ela nos ronda, e mesmo assim não aceitamos a Senhora Morte, cujo aceno vai nos levar também, inevitável. Ninguém sabe quando virá essa surpresa que não quereríamos ter. Chegará, súbita ou sorrateira, dedo dobrado que sinaliza: "Venha comigo, chega de brincar de vida, agora a coisa é real".

Meu primeiro encontro com ela foi a pomba morta de frio que, menininha ainda, encontrei no pátio de casa: pensei que ela estivesse dormindo e a aconcheguei debaixo do casaco.

Quando me fizeram ver que estava morta, chorei inconformada. Muita insônia também sofri naquele tempo, quando morreu o menininho de 2 ou 3 anos, filho de um vizinho nosso. Os gritos de agonia daquele pai vararam a noite e chegaram até meu quarto, trazendo susto e terror só de lembrar, por longo tempo ainda.

Mais tarde, eu conheceria intimamente a Velha Dama sobre a qual tanto já escrevi: ela abriu-me as portas do mistério e, embora eu nunca passasse da soleira, me fez valorizar mais a vida, os afetos, o que há de belo e bom na natureza, na arte e no ser humano, e me fez acreditar nos laços de amor que ela, a morte, não desfaz.

No recente desastre de avião, que levou num golpe mais de 200 pessoas, está uma prova dramática do quanto vivemos alienados em relação à morte, e quanto ela pode ser cruel.

Sabemos de apenas alguns dramas desse acidente: o casal em lua de mel, pais perdendo filhos, dez funcionários de uma indústria francesa premiados com quatro dias no Rio com acompanhante. A lista é longa e triste. Nem precisamos de um cataclismo de grandes dimensões: basta a vida cotidiana, olhar um pouco para o lado, e lá está a morte, trazendo angústias sem medida.

No começo tudo é horrível: só desespero e dor. No choque inicial, palavras e gestos de conforto, embora essenciais, podem até parecer ofensivos a quem sofre tanto. Paciência com a pessoa enlutada faz parte dos cuidados em relação a ela: a dor é natural e necessária. Mas nossa frivolidade abomina silêncio, recolhimento e tristeza; queremos que o outro não nos perturbe nem ameace com suas lágrimas.

Então dizemos: "Reaja! Não chore! Controle-se!", embora seja até perverso exigir isso de alguém que está de luto. Uma jovem reclamou que sua mãe, viúva, não parava de chorar. Desconfiei daquela vagamente irritada preocupação e perguntei: "Quanto tempo faz que seu pai morreu?". A resposta veio imediata: "Quinze dias". Sugeri que ela deixasse a mãe com seu sofrimento, para que um dia ela pudesse se recuperar.

Porque, mesmo que não haja verdadeiro consolo, existe a possibilidade de, a seu tempo, cada um se recompor. Ainda que a gente nunca mais seja a mesma, mudar não é tornar-se pior.

Faz parte desse processo, entender que a melhor homenagem a quem se foi é viver como ele gostaria que a gente vivesse. Esse é um dos segredos de não sobreviver como vítima que se arrasta indefinidamente, mas como quem reencontrou em si, de uma outra forma, o que parecia perdido.

Quando seus amigos choravam porque ele fora sentenciado, por uma sociedade preconceituosa, a tomar veneno, o grego Sócrates os censurou: "Por que se lamentam assim? Se a morte for um sono sem sonhos, que bom será. Mas, se for um reencontro com pessoas queridas, que bom será também!". O tempo vai preservar e iluminar os melhores momentos havidos.

Talvez passemos a valorizar menos o dinheiro, o sucesso, a beleza e o poder. Seremos mais abertos à vida, mais gentis com os outros, mais bondosos conosco mesmos.

Morrer não é ser deletado: aquele que aparentemente nos deixou está preservado no casulo de seu novo mistério, sem mais risco, doença ou tormentos. Não vai envelhecer nem sofrer nem se apartar de nós, os vivos. E não o perderemos nunca mais.

Lya Luft é escritora

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