sexta-feira, 26 de junho de 2009


CARLOS HEITOR CONY

Tempos de Chaplin

O vagabundo chapliniano é um realista empedernido que nunca se ilude

"CHAPLIN É UM chato!", disse-me Glauber Rocha um dia, quando estávamos comprimidos numa exígua sala de janelas gradeadas, num quartel da rua Barão de Mesquita, com sentinela armado à porta. O agitado e genial artista baiano queria me convencer de uma chatice que, antes dele, eu proclamara em artigos e livro.

Anos depois, o Marcelo Madureira diria a mesma coisa a respeito de Glauber: um chato. "Tempora mutantur et nos cum illis", os tempos mudam e nós com eles, constatou o poeta Virgílio, outro que os alunos de latim costumam considerar um chato.

Ao Glauber, creio que respondi mais ou menos isso: "Como você, Chaplin não tem humor. Num baiano, a falta de humor é perdoável, porque todo baiano já é gozado de nascença. Mas num inglês, isso é imperdoável. Sem humor, o inglês é apenas uma silhueta com guarda-chuva que não serve para nada".

O ambiente da cela da Polícia Militar não era propício a uma discussão. Glauber estava terminando "Terra em Transe" e o confinamento aumentava o seu transe pessoal.
O filme estreou, pouco depois, com muito sucesso. E ainda hoje é peça de sustentação das inúmeras revisões do cinema novo que promovem por aí.

Mas -e o próprio Glauber admite isso- não suporta mais um circuito comercial, nem no Brasil nem nos países onde já foi exibido. Com menos de 50 anos de idade, "Terra em Transe" caiu no buraco dos cineclubes e cinematecas, buraco só frequentado por aficionados de variados tamanhos e feitios.

De tempos em tempos, os cinemas dos circuitos comerciais começam a exibição de lotes de filmes de Chaplin, da fase da United Artists, companhia da qual ele foi um dos quatro fundadores.

Em Londres, Paris, Roma, Nova York, periodicamente um filme dele entra em cartaz. Nas TVs de todo o mundo, inclusive no Brasil, suas obras maiores são exibidas com regularidade: "O Grande Ditador", "Tempos Modernos", "Luzes da Cidade", "O Circo", "Em Busca do Ouro", "Luzes da Ribalta", "O Garoto".

Chaplin era dotado de extraordinário senso de negócio (retirou todas as suas ações na véspera do "crash" da Bolsa de Nova York , em 1929). Ele aproveitou a falência da United para ficar na posse dos maiores -mas não necessariamente melhores- filmes de sua longa carreira.

Começara, há muito, a liberar em doses homeopáticas as suas antigas produções e todas elas passaram a disputar não o restrito mercado dos cineclubes, mas os grandes circuitos comerciais.

Revi "Luzes da Cidade" em Roma, num cinema que estava exibindo a história da ceguinha havia dois anos seguidos. Logo depois, em Paris, revi "O Grande Ditador", que estava em cartaz há oito meses em cinco salas das grandes, e não naqueles estudiozinhos do Quartier Latin, que abrigam as produções do chamado Terceiro Mundo.

Como todo clássico, de cinema, da literatura, da música e da pintura, ao longo do tempo sofre diversas e contraditórias percepções. Uma delas, a que mais me irrita, é comparar seu personagem a Dom Quixote, jogando o seu vagabundo para o território da loucura ou do delírio.

Nada mais equivocado. Ao contrário do engenhoso fidalgo da Mancha, o vagabundo chapliniano é um realista empedernido que nunca se ilude.

Quixote não atacava moinhos de vento, atacava gigantes inimigos que, uma vez derrotados, eram transformados por um feiticeiro em moinhos de vento, para humilhá-lo. O delírio dele era real, a realidade é que era mudada pelas forças do mal que combatia.

Chaplin é diferente, ele nunca se ilude. Quando come uma bota, ele sabe que está comendo uma bota, nenhum feiticeiro transformou o rosbife em bota, o talharim em cadarços. A realidade da fome, e não a alucinação do sonho, faz aceitar a verdade sem transformá-la. A bota é uma bota.

No final de "O Circo", sozinho no terreno abandonado pela lona, ele vê o cartaz com uma estrela, anunciando a última apresentação do circo itinerante que partiu em busca de outras plateias.

Faz uma bolinha com a estrela e dá um chute nela, retomando a solitária estrada na qual sempre some, uma estrada que, segundo Drummond num poema famoso, está coberta de poeira e esperança.

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