Aqui voces encontrarão muitas figuras construídas em Fireworks, Flash MX, Swift 3D e outros aplicativos. Encontrarão, também, muitas crônicas de jornais diários, como as do Veríssimo, Martha Medeiros, Paulo Coelho, e de revistas semanais, como as da Veja, Isto É e Época. Espero que ele seja útil a você de alguma maneira, pois esta é uma das razões fundamentais dele existir.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
03 de dezembro de 2008
N° 15808 - SERGIO FARACO
O Anjo da Morte
Naquela rua e quarteirões adjacentes o dentista Romildo Bello era o único morador com telefone, e então era comum que boas e más notícias de Porto Alegre viessem dar no Alegrete por seu aparelho, o 19.
Com o tempo e por algum motivo misterioso, ou nem tanto se figurada a catadura do doutor - olhinhos de rato, nariz de gancho e boca pequena, como desprovida de lábios -, o noticiário alvissareiro passou a eleger outros caminhos, e o fone 19 tornou-se exclusivo dos aziagos desenlaces.
Naqueles anos morria-se a miúdo, sem muita lengalenga, e o dr. Bello se desincumbia dos avisos como de um segundo ofício. Fez-se conhecido e temido. Se apontava na esquina, tremiam as famílias da rua, e na medida em que ultrapassava as portas sucediam-se suspiros num cortejo de alívios.
De repente parava, olhava para trás ainda a tempo de ver cabeças ansiosas se ocultando, e retesava-se. Hierático, levava o nó do dedo à fatídica porta. Três batidas, e os moradores, ah, eles já podiam ter certeza de que entre a parentalha havia um morto fresco. Bem, nem sempre alguém morrera.
Às vezes o aviso era de doença. Mas o dentista acrescentava: “Um caso perdido”. E não errava nunca. Era como se sua intermediação agravasse o estado do doente, abreviando-lhe os dias na parte de cima da terra.
Bem ou mal, dr. Bello continuava atendendo no consultório, e só o abandonou após um incidente que a todos surpreendeu: o Anjo da Morte arrastava uma asa pelos prazeres da vida, e não resistindo à juventude e à louçania de uma paciente, atirou-lhe um beijo à formosa boca.
A vítima pôs-se a gritar pelo nariz, e o dentista, grudado nela como uma ventosa, só desgrudou quando acudiu, em alvoroço, a freguesia do bolicho ao lado. Na mesma noite, o marido ofendido bateu à porta e lhe pespegou uma soberba tunda. Foi quanto bastou para a debandada das cáries.
Fechado o consultório, devotou-se aos avisos. Mas eram outros os tempos, já escasseavam as chamadas de Porto Alegre, já muitas famílias tinham telefone e já os moribundos, menos apressados, começavam a espernear.
E o ofício do doutor, como o dos seleiros, correeiros, tamanqueiros e encadernadores, encetava o mergulho no abismo em cujo fundo, com a dentama escancarada, espreitava-o a voragem do progresso.
Sem pacientes, mudo o fone 19 e sem vivalma que lhe nutrisse a fama ao passar desta para a pior, pôs-se a murchar, perdendo peso e estatura, e a andar sem rumo pelas ruas da cidade, do Hospital de Caridade ao Povo da Lata, da Ponte Seca ao Armazém da Portuguesa. Ainda vive em Alegrete.
E quando passa no quiosque da praça, arrastando seu desengrenado arcabouço, o populacho grita: “Sai, urubu”. E ele acelera o passo, o pobre, curvado ao peso da ingratidão citadina e de tantas e tantas mortes anunciadas.
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