06 DE JANEIRO DE 2022
CARPINEJAR
O delicado papel do carona
O carona deveria tirar carteira de acompanhante, assim como o motorista precisa passar por testes práticos e teóricos para alcançar a sua habilitação.
O copiloto é capaz de estragar a melhor das viagens, obscurecer a Rota Romântica ou bloquear a imensidão esverdeada do pampa. É um risco transportar quem é ansioso, autoritário ou preocupado demais, ainda mais quando ele vai ao seu lado, com plenos poderes de mexer em tudo que é botão.
Ser carona exige uma leveza extraordinária, uma maturidade da gratidão, um estado de graça.
Requer generosidade para lembrar o momento de dividir a água e senso de presença para apontar as belezas da paisagem, chamar atenção para os tons do crepúsculo e capturar um arco-íris ao longe. Depois de cem quilômetros rodados, ser agradável é um dom de poucos e raros. Em passeios curtos, qualquer um disfarça a chatice.
Prioritariamente, o carona não pode gritar. Por nada desse mundo. Mesmo que passe um cavalo correndo na pista. Gritar é cegar o condutor, ele achará que não está enxergando algo à sua frente. A tendência é de se desesperar, colocar o volante para a direção oposta e provocar um acidente.
O carona não pode concorrer com o motorista, querer tomar o seu lugar, forjar um golpe de Estado. Não dá para aguentar o palpiteiro de plantão, que contraria até o GPS e reclama que sempre foi escolhido o percurso errado. O carona não pode reclamar do ar-condicionado forte e inventar de abrir as janelas para o vento chicotear os cabelos.
O carona não pode entrar no carro e dormir durante toda a viagem. Não está num hotel. Isso é abuso e excesso de mordomia - que contrate um chofer e se acomode no banco de trás. Sua função é conversar, evitar a monotonia perigosa da linha reta.
O carona não pode mexer na playlist, cometer o crime de interromper uma canção na metade, na hora em que começa o karaokê.
O carona não pode provocar náusea por consumir salgadinhos com cheiro de chulé ao seu lado. Esses salgadinhos só não enjoam quem come. O carona não pode decidir parar um sem-número de vezes para uma selfie inesquecível.
O carona não pode se movimentar que nem um mico, pulando de galho em galho, subindo nos assentos para localizar um objeto que esqueceu no bagageiro, dentro da mala.
O carona não pode confundir o deslocamento com terapia, descrevendo a sofrência do último relacionamento e pedindo a opinião para uma situação irreversível. Não é porque se está sozinho com alguém que há a mesma privacidade de um divã.
Ser carona é mais complexo do que ser motorista. Tem que ser muito motorista para ser um bom carona.
CARPINEJAR
Nenhum comentário:
Postar um comentário