quarta-feira, 12 de janeiro de 2022


12 DE JANEIRO DE 2022
MARIO CORSO

Semiótica de geladeira

Quando jovens, precisamos de guias espirituais para nos ajudar a decifrar os mistérios da vida e do mundo. Eu tive muitos, fui trocando. A melhor foi uma prima mais velha.

Difícil saber se a especialidade da Anna era a mulher, ou eu estava especialmente atento ao tema. A vantagem do pensamento dela era ser direto, leis gerais de orientação, virou engenheira. Por exemplo, ela me disse que a primeira coisa que as mulheres olham num homem é o sapato. Apenas pelo calçado elas já obteriam informações sólidas sobre o gajo em análise. Nunca mais descuidei deste item.

Até lembro da aula sobre a semiótica da envoltura do pé masculino e suas revelações, mas era algo que eu não iria usar. Ficou-me melhor gravada a palestra sobre como desvendar o caráter de uma mulher pelo uso que ela faz da geladeira. Naquela época em que homens não falavam com geladeira, Anna olhava para uma e discorria sobre a personalidade da dona. Para ela, a alma da mulher revelaria-se na administração daquele restrito espaço gelado.

Todo cuidado seria pouco com mulheres que gerenciam, nas palavras dela: a geladeira psicótica. É quando abre-se a porta e tudo cai. Há embrulhos com sobras da Páscoa quando já é Natal. Não cabe mais nada e não há nada que realmente se aproveite. Até o mofo morreu. Seriam acumuladoras e preguiçosas. Além disso, correriam o risco de ter a cozinha interditada pela vigilância sanitária.

Outro perigo seriam as donas de geladeira estilo deserto. Você abre a porta e parece que chegou da fábrica ontem. Geladeira limpa e vazia é signo de aura anoréxica. Pessoas que se esquecem ou não gostam de comer. Com certeza eu seria mal alimentado em todos os sentidos da existência.

Não se engane, a geladeira perfeita tampouco pode traduzir boa coisa. Estaríamos diante de alguém que dá demasiado peso para o lado prático e material. Afinal, quem tem tempo para isso, não se dedica a mais nada. Essas mulheres não comem, têm rituais com a comida. Perigo de ser trocado por instrutor de ioga ou chef de restaurante orgânico.

O colorido dos potes diz muito. Mulher com todos tupperwares iguais revela pouca circulação. Existe um intercâmbio de potes com a casa da mãe, dos irmãos, das amigas, das colegas. Quanto mais variados, mais é generosa e confiável. Potes reciclados evidenciam uma mulher econômica e com senso prático. Ganha pontos. Uso de pote de isopor perde todos pontos.

Para Anna, a quantidade de álcool na geladeira feminina é determinante. Ela não confiava na mulher que não bebe e menos ainda nas que bebem demais. Seria aceitável um fardinho de cerveja, um vinho branco aberto e uma vodca no congelador. Mais do que isso, desista; menos do que isso, não insista.

Último desafio: cozinheira mesmo é a mulher que inventa com o que tem na geladeira. Comprando filé qualquer sirigaita se dá bem. Para minha prima, na engenharia das sobras se revela a verdadeira artista.

Engana-se quem pensa que ela ensinava a buscar mulheres prendadas. Odiava mulheres que não estudam e não leem. Porém, era nos detalhes das lides práticas que acreditava descobrir as virtudes anímicas secretas.

Quando apaixonei-me pela Diana, havia o fato de ela não possuir relação minimamente estável com nenhum eletrodoméstico. Fui consultar minha prima. Ela foi direta: casa, nem sempre é assim que funciona!

MARIO CORSO

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