segunda-feira, 17 de janeiro de 2022


17 DE JANEIRO DE 2022
CLÁUDIA LAITANO

Dissonância cognitiva

De todos os personagens infames produzidos pela pandemia até agora (o médico cloroquiner, o jornalista desinformante, o presidente que faz propaganda de remédio...), um dos mais inusitados é o "antivax não praticante".

Não sei quem cunhou a expressão, mas o sentido é mais ou menos autoexplicativo. Trata-se daquele sujeito que reclama do passaporte vacinal, confia mais no tio do Zap do que nos cientistas e considera o tenista Novak Djokovic um modelo de bravura - mas, por via das dúvidas, tomou suas três doses de vacina assim que pôde. Daqui a 99 anos, quando for levantado o sigilo de um século imposto por Jair Bolsonaro ao seu cartão de vacinação, vamos ficar sabendo se o presidente da República faz parte dessa peculiar linhagem de negacionistas capazes de voluntariamente injetar no próprio corpo aquela mesma substância que vituperam nas redes sociais, nas festas de família e no bar da esquina.

A passos lentos e mais ou menos firmes, vamos nos encaminhando para 70% da população com esquema vacinal completo. Se o governo federal não se esforçasse tanto para atrapalhar, esse índice poderia até ser mais alto. Para nossa sorte, a campanha contra as vacinas não emplacou no Brasil, e a maior prova disso é o nosso "antivax não praticante" e sua incurável - e altamente transmissível - dissonância cognitiva.

Em um país que já produz tipos como o crente a favor de armas, o gay enrustido que faz discurso homofóbico, o meritocrata que não perde a chance de furar uma fila e o paladino da moralidade que falsifica atestado e sonega impostos, pregar uma coisa publicamente e fazer outra em casa é quase uma paixão nacional.

Esse desconcerto entre prática e discurso, claro, não foi inventado ontem. O esforço para negar ou apagar as próprias origens tampouco é novidade, mas o jornalista Sérgio Camargo levou a um novo patamar esse tipo de desinteligência existencial. O presidente da Fundação Zumbi de Palmares, que não acredita em racismo e despreza o movimento negro, agora decidiu rebatizar o órgão com o nome da Princesa Isabel - a mulher branca que deu um canetaço abolicionista aos 45 do segundo tempo do século 19, quando a escravidão já era uma vergonha mundial impossível de ser sustentada por muito mais tempo.

Sérgio é filho de Oswaldo Camargo, poeta e escritor reconhecido como uma importante liderança intelectual do movimento negro. Discordar do pai, em alguns casos, pode até ser sinal de lucidez. Discordar da realidade nunca é.

CLÁUDIA LAITANO

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