sábado, 15 de janeiro de 2022


15 DE JANEIRO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

ERGA A VISÃO

Plena de arte, uma nova imagem ora encanta Porto Alegre. Erga a visão para vê-la e pensar com seus símbolos e saberes. É a obra-prima pintada pela dupla de artistas muralistas Mona Caron e Mauro Neri, com artistas locais, na fachada lateral (empena cega, ora vidente) de prédio público, do Daer e da Procuradoria-Geral do RS. O imenso mural é bem visível da Ponte de Pedra, coração antigo e açoriano da Capital. Ali a cidade ascende em pintura que traz consigo o que importa vermos, com beleza e nobres significados. A obra ilumina bem a muitas questões: o que é arte? O que são uma e esta cidade? E, especialmente, o que somos no mundo e para onde nos destinamos.

A obra é convidativa, fácil de ver. O convite é para seguirmos com reflexão o caminho do encanto e compreendermos as formas ali representadas, sua composição e poderes, seus símbolos, mensagens possíveis e desejos despertos. Desponta figura humana, mulher negra elevando a cabeça com olhar prenhe de emoção feliz. É a imagem de Beatriz Gonçalves Pereira, a Bia da Ilha da Pintada, mulher notável, mãe de santo, que vem da borda fluvial, periferia da cidade, para dizer algo no centro, com força poética. Suas mãos se estendem em gesto de oferenda mas também receptivo, estabelecendo um eixo horizontal em que há um fluxo rumo ao coração da pessoa. Não por acaso, o gesto de Bia é também ponderador, as palmas erguidas como pratos de uma balança, com clamor de justiça e piedade. Veja nessas mãos o trabalho e as marcas de muitos destinos, e outras vias que se abrem, mãos que acolhem com carinho os olhares da metrópole, nossa visão erguida.

O fluxo, como tudo o que constitui esse poema visual, vem da paisagem e vai com arte rumo ao céu, mas encontra no caminho o caule de uma planta que se ergue como coluna da imagem e, agora, desta cidade. É um axis mundi, eixo do mundo, com que a cidade antiga se erguia como árvore da vida, unindo mundos ínfero, da superfície e celestial. A planta é Justicia gendarussa, de origem chinesa, difundida em culturas do Oceano Índico e plena de propriedades medicinais - inclusive como contraceptivo masculino (alô, patriarcado). Seu uso na medicina popular e no candomblé traz o nome da obra recém inaugurada: Quebra Tudo, Abre Caminhos. Por meio dessa imagem, muitas vias e veias convergem e se elevam rumo ao belo céu desta pólis, deste planeta.

Olhe para cima, e o faça com as lentes de todos esses símbolos, com arte, ciência e poder. Há um justo clamor antirracista, com beleza e dignidade que vêm de áreas em que falta urbe mas florescem, nos jardins de Bia, esta planta justiceira e muito mais. Há uma erva profilática, o verde que oferece cura, a seiva e a graça que tudo fazem com sacralidade benfazeja. O fluxo de energia aqui celebrado evoca as forças veras da cidade. Celebração da vida, da sensibilidade, da inteligência e da esperança.

Gratos aplausos para Mona e Mauro, e para Marcelo Sgarbossa e a comunidade e os recursos que mobilizou para esse feito que encanta Porto Alegre. Erga a visão. No topo da imagem há uma flor, e com ela e todas as forças vamos a destinos elevados.

FRANCISCO MARSHALL

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