10 DE JANEIRO DE 2022
CÍNTIA MOSCOVICH
Linguiças
Um dia depois do primeiro turno das últimas eleições para a presidência, os números me deram a certeza da vitória de Jair Bolsonaro - não vou discutir aqui o papel das militâncias, não se trata disso.
Consternada, li, naquela segunda-feira, que entre as propostas do candidato estava acabar com o Ministério da Cultura e com o Serviço Social do Comércio (Sesc). Perguntei aqui e lá, até que consegui o contato de um dos filhos de Bolsonaro. Decidida a formar uma comissão multidisciplinar, escrevi a ele dizendo dos receios da comunidade cultural, certa de que ele gostaria de nos receber antes de tomar qualquer atitude. A resposta: o quase-presidente não tinha interesse em nos receber.
O fato de não ter qualquer intimidade com as áreas afins à expressão artística e cultural - e de nutrir raiva, quase ódio, de quem tenha - não impede que o presidente, no entanto, sinta-se no direito de mandar e desmandar em instituições valiosas para o país como se estivesse num bolicho vendendo linguiças - e me perdoem os bolicheiros, mas é certo que, a exemplo do que se passa com as linguiças, Bolsonaro não tem a menor noção do que existe dentro (muito menos para o que serve) da maioria dessas entidades. Indignado com "a pornografia" que seria feita com dinheiro público, Bolsonaro declarou, em relação à Agência Nacional do Cinema: "Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine".
Ora, se um líder não conhece determinado assunto, que se cerque de pessoas que o assessorem (ou que, pelo menos, seja frugal ao comentar o que não sabe). Se nem isso ele aceita, o presidente não tem nada que meter sua colher nas agências reguladoras (muito menos de cinema), órgãos que são técnicos e absolutamente avessos à ingerência política.
Num país com vocação bananeira, em que as tradições, todas, nem chegam a se firmar e já viram trastes, no qual o cinema tem sido uma exceção feliz, precisávamos de um líder comedido e sóbrio, capaz de pequenas mas sólidas nobrezas e de alguns sacrifícios pessoais que pudessem servir de exemplo - sobretudo, precisávamos de um líder que se dedicasse a meditações ou silêncios que, pelo menos, dessem a impressão de estar refletindo sobre o bem da nação.
* Esta coluna foi publicada no dia 29/7/2019. Cíntia Moscovich voltará a publicar textos inéditos no dia 24.
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