quinta-feira, 9 de dezembro de 2021


09 DE DEZEMBRO DE 2021
CARPINEJAR

A idade misteriosa dos pais

Não sabemos a idade dos pais. Pode confessar, não se envergonhe. De tanto temer me confundir na hora de responder, eu decidi usar o recurso de decorar o ano de nascimento. Você não faz igual?

Alguém pergunta a idade deles, você começa a conta atualizada. Demora um pouco para processar os dados. Gagueja, volta à matemática dos dedos. Depois que os pais passaram do arco do meio século de vida, não há mais como confiar no poder da memória instantânea. Ninguém pretende ser julgado como um mau filho por causa de algum tropeço no calendário.

É um concurso de admissão filial, com risco de ser sumariamente deserdado ou ganhar a alcunha de ingrato. Se alguém me questiona, antecipo: nasceram em 1939. Daí diminuo 1939 de 2021 e chego ao resultado em menos de três minutos. Dependendo da tensão do momento, uso a calculadora do celular. O meu sorriso é de alívio. Só realizo prova com consulta.

Antes, eu penava por tentar ser rápido. Acreditava que rapidez era intimidade. Forçava a hipnose do relógio balançando em minha frente: buscava me recordar das velas do último aniversário deles, de uma conversa familiar, de um encontro recente sobre o assunto. O desespero não ajuda, é uma página em branco. Sequer podia consultar a identidade alheia.

Já me contradisse em entrevistas. Já proferi falsos testemunhos em palestras. Já errei para mais e me envergonhei de corrigir. Já errei para menos e deixei por isso mesmo.

Hoje não sofro. Mas admito que não sei a idade na ponta da língua. Mantenho a minha muleta por perto, a minha cola. É melhor nos prevenirmos do que vivermos assustados com as abordagens fulminantes.

O engraçado é que estava com meu pai numa livraria na Riachuelo, em Porto Alegre, quando o livreiro mais velho, contemporâneo dele, saiu do balcão para um abraço, chegou perto e, educadamente, quis descobrir quantos anos ele tinha. O pai gelou, coçou o queixo, cofiou a sua barba fantasma (foi barbudo quando jovem) e também atalhou: "nasci em 1939".

Ele tampouco se mostrava dono de seu tempo. Ficaram os dois arriscando cálculos e se ajudando em minha frente. Como dois personagens de Jorge Luis Borges no labirinto da biblioteca.

CARPINEJAR

Nenhum comentário: