19 DE NOVEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA
Por que os jovens são cruéis
Lembra daquela época remota em que tudo, menos farmácias e supermercados, estava fechado em Porto Alegre? Parece que faz tanto tempo e, no entanto, foi anteontem, no ano passado. Num daqueles dias estranhos, fui levar a Marcinha a algum lugar e, enquanto ela se desincumbia do seu compromisso, estacionei o carro bem em frente à minha velha escola, o Instituto Piratini. Fiquei olhando para o prédio do outro lado da rua e percebi que, no portão de ferro, havia uma janelinha aberta.
Não resisti. Fui até lá.
Colado ao portão, acoplei a cabeça ao espaço da janelinha e espiei para dentro. Lá estava o pátio no qual passávamos os recreios nos anos 70. Comecei a lembrar dos personagens que circulavam por ali. Da Janice, por quem desenvolvi uma furiosa paixão platônica. Ela era magra, alta, tinha cabelos crespos e longos e usava calças jeans justíssimas. Não recordo de termos tido uma única conversa de verdade, só nos cumprimentávamos e, vez em quando, travávamos diálogos breves, como:
- Me empresta a tua borracha? - Claro. Ó. - Obrigada. - De nada.
Isso era o suficiente para eu passar o resto do dia pensando que poderia ter aproveitado para falar algo inteligente e rememorando a forma como nossos dedos se tocaram quando lhe entreguei a borracha. A verdade é que a considerava inatingível. Ela era mais velha e parecia segura e pouco ria. Mulheres que pouco riem são misteriosas...
Parado no portão, cheguei a ver de novo uma cena que se passou há mais de 40 anos e que até já contei, crônicas atrás: eu e meu amigo João Raul conversávamos durante o recreio, os dois de pé na escadaria que levava às quadras de esporte. De repente, a Janice veio de lá. E veio, por Deus Nosso Senhor, olhando para mim. Veio na nossa direção, me olhando fixamente, o rosto delicado e sério, e veio que veio que veio.
Enquanto ela vinha, meu coração deu um salto para o meio da garganta e lá ficou, batendo com tanta força que parecia prestes a explodir. Ela subiu os degraus com aquela sua graça maliciosa e, ao parar junto a nós, tirou os olhos de mim e os empurrou para o lado do João Raul.
- João - disse, com a voz de amêndoas e mel, e começou a falar com meu amigo.
Havia se postado tão perto de mim que lhe sentia o hálito de chocolate branco e o calor que vinha de seu corpo. Ficou falando sei lá o que com o João Raul e depois saiu, não sem antes voltar a fincar os olhos em mim e se despedir:
- Tchau, David.
Jesus Cristo amado! Que emoção! Ela falou o meu nome! Repisei aqueles poucos minutos centenas de vezes, nos dias seguintes. Tinha certeza de que ela fizera de propósito. Ou quase certeza. Queria acreditar que fosse assim.
Parado no portão do colégio nos exóticos tempos da pandemia, em 2020, revivi aquele momento de magia juvenil e sorri: como eu era bobo e como era bom.
Hoje, leio que os jovens não estão indo se vacinar e que, por isso, a contaminação de coronavírus pode crescer. É terrível que os jovens estejam procedendo assim, mas é também compreensível. "Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel e o que é paixão", cantava Belchior. E eu, aqui, lembrando dos meus anos de Piratini e de como certas emoções me dominavam por completo, entendo: os jovens têm mesmo mais o que fazer.
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