11 DE NOVEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA
Perdas num tempo de Feira do Livro
Temo que esteja deixando de gostar de romances policiais. Isso me preocupa, porque ler um bom romance policial sempre foi um descanso para a minha pequena mente. Precisava dar uma espairecida? Pegava um Raymond Chandler, um Dashiell Hammett, um James Ellroy ou um Ed McBain e me regalava. Tenho coleções de literatura noir e as prezo como se fossem o que as pessoas chamam hoje de "pets". Eu as levaria para passear e limparia seu cocô, se elas pedissem.
Aliás, sempre que vejo alguém limpando o cocô do cachorro na calçada, me pergunto: "Quem é o chefe? O que faz cocô ou o que limpa o cocô?"
Isso significa que eu seria subalterno das minhas coleções de romance noir. Mas essa situação está mudando. Há livros policiais que me impacientam. Leio cento e poucas páginas e largo, pensando: tenho mais o que fazer.
Agora mesmo, vi, na livraria do Ivan Pinheiro Machado, um romance do suíço Joël Dicker. O Desaparecimento de Stephanie Mailer, é o título. Perguntei ao Ivan se ele já tinha lido, ele respondeu que não.
- Mas esse cara é considerado um fenômeno - acrescentou.
É verdade. Joël Dicker vendeu milhões (não falei milhares, falei milhões) de romances na Europa. Ele desfruta de bom prestígio entre os admiradores de romances policiais. Além disso, o nome do autor tem trema. Sou um ressentido do banimento do trema da língua portuguesa. O uso do trema confere charme a um idioma. Ele se torna mais requintado, até mais misterioso. Sem trema, a linguiça nunca mais foi a mesma. Parei de fazer arroz de china pobre depois que a linguiça perdeu seu trema.
A propósito: esse "parei" do verbo "parar", no sentido de "cessar", sofreu uma das mudanças que mais me magoaram na reforma ortográfica cometida pela Academia Brasileira de Letras. Porque o "para" na acepção de "detenha-se", perdeu o acento e, perdendo o acento, perdeu a força. Esse "para" é uma ordem, é impositivo, é urgente, tem três exclamações:
- PÁRA!!!
Precisa do acento. Ou fica frouxo:
- Para. Não faço mais arroz com linguiça sem trema, não escrevo mais para do verbo parar.
Mas o nome do autor de O Desaparecimento de Stephanie Mailer tinha um elegante trema e ele é amado na Europa. Comprei o livro. É um alentado volume de quase 600 páginas. Calculei: terei pelo menos duas semanas de diversão.
No entanto, entrei no livro e comecei a ficar decepcionado. Era tudo tão ingênuo, tudo tão puro, tudo tão... suíço. Mesmo assim, fui em frente. Avancei mais ou menos até a página 350 e então me detive. Disse para mim mesmo:
- Pára!
E foi um para com acento e exclamação, porque foi forte. É que, àquela altura da trama (não do trema), já havia identificado todos os truques do autor, e me desinteressei pelo livro. Estava decidido a largá-lo, mas, em deferência ao trema (não trama) de Joël, continuei até o fim, só que lendo em alta velocidade, numa leitura dinâmica, até engolir o ponto final com alívio. Foi uma história boba, e me senti bobo por ter dado atenção a ela. Pois agora, em época de Feira do Livro, é o que me inquieta: será que estou deixando de ser um leitor de romances noir? Que diversão estou perdendo. Que momentos de lazer não terei mais.
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