10 DE NOVEMBRO DE 2021
ARTIGOS
CRIMINALIZAÇÃO DA MISÉRIA
A repressão estatal se movimenta há milênios na direção da acusação e do julgamento. Os dados do maxiencarceramento brasileiro contradizem o senso comum ao demonstrarem que condutas delituosas são sancionadas. Já a análise qualitativa desses números comprova que a massa de reprimidos é composta por miseráveis, aqueles que trazem em seu gênero, pele ou escolhas de vida marcadores sociais desvalidados pela cultura "hegemônica".
É preciso que se afirme: pessoas são criminalizadas por serem negras, mulheres, pobres ou transexuais - em maior medida quando há cumulação desses marcadores -, assim como escapam da punição por serem homens, brancos ou ocupantes de posições sociais valorizadas.
Sem recair em um discurso simplificador, a realidade forense revela um sistema empobrecido na tarefa de compreender, de defender e de acolher a miséria humana e de enfrentar as vulnerabilidades.
Aqueles que furtam comida e materiais de higiene são implacavelmente perseguidos com recursos e a negativa de aplicação de figura jurídicas consagradas, enquanto corruptos e corruptores, criminosos do colarinho branco e sonegadores de impostos, contam com a leniência do sistema e com a criatividade de teses que levam à improbidade administrativa e ao prejuízo do erário público.
Os moradores de rua que ocupam baixadas de pontes, marquises ou trechos de calçadas têm moradias destruídas e bens confiscados sem ordem judicial ou prévia notificação, enquanto os proprietários de mansões irregulares em áreas públicas e de proteção ambiental são beneficiários do devido processo legal e da condescendência das autoridades públicas.
Os movimentos sociais organizados que agem perante a incapacidade do Estado em garantir direitos sociais básicos, são criminalizados e têm suas atividades obstaculizadas com exigências "burocráticas", enquanto prédios públicos e grandes empreendimentos seguem funcionando sem estrutura e planos de prevenção de acidentes.
A ordem jurídica efetivamente não é aplicada a todos da mesma forma e, paradoxalmente, os castrados são aqueles que, vítimas desse estado de coisas excludente, menos lesam o interesse público. Aqueles que pouco tiveram, têm e terão, em termos de bens materiais, reconhecimento e oportunidades, como diria George Orwell, "todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros", infelizmente.
Defensor público e professor da Escola de Direito da PUCRS felipekbr@gmail.com - FELIPE KIRCHNER
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