sábado, 13 de novembro de 2021


13 DE NOVEMBRO DE 2021
BRUNA LOMBARDI

CLARICE

Comecei a escrever muito cedo, sem saber que isso me levaria a conhecer de perto meus maiores ídolos. Desde os 11 anos, meus pais me davam os livros e eu lia, imaginando que os escritores eram todos de algum outro século.

Anos mais tarde, comecei a publicar poemas em revistas literárias. E uma vez recebi um cheque de 400 dólares da Universidade de Nova Iorque por uma poesia. Foi assim que descobri que se podia ganhar dinheiro escrevendo.

Quando lancei meu primeiro livro, No Ritmo dessa Festa, fui convidada participar da Feira do Livro em Porto Alegre, um dos maiores encontros literários, que reuniu escritores de todo país. Foi quando conheci gente que eu tanto admirava, como Luis Fernando Verissimo, Carlos Nejar, Sergio Faraco, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, entre tantos outros. E naturalmente, Mario Quintana, que se tornaria meu grande amigo da vida inteira. Perto desses gigantes, eu era considerada a "mascote" da turma.

Para minha surpresa, Clarice Lispector e eu nos aproximamos. Ela era uma entidade, eu era fã e agora ela conversava comigo como uma amiga, apesar da enorme diferença de idade, e me fazia sentir seu afeto. Tinha um carisma incrível. Era muito bonita e fiquei sabendo que tinha tido um acidente, um incêndio no apartamento quando ela adormeceu com um cigarro aceso. Tinha cicatrizes e certa dificuldade de movimento. Mas nada disso tirava a sua beleza. O rosto de desenho forte, marcante, as maçãs do rosto salientes. Tinha um brilho intenso. E um olhar tão profundo. Parecia que olhava dentro da gente.

Tudo nela me impressionou, sobretudo sua generosidade. Quando nos despedimos em Porto Alegre, me convidou para ir ao seu apartamento no Rio de Janeiro. É claro que eu fui.

Minha lembrança é a de um apartamento meio na penumbra, com as venezianas baixas e reflexos de luz e sombras na parede.

Clarice tomava café preto forte. Eu a acompanhava. Uma vez comentou sobre a dificuldade de ser mulher escritora no Brasil e me mostrou o cheque de seus direitos autorais. Era um cheque de 16 cruzeiros, uma quantia ínfima. E me disse:"Bruna, você precisa ter outra profissão. Todos nós temos". E acrescentou: "Não dá pra viver disso que a gente faz".

Para mim, foi um aviso, compreendi que não ia conseguir viver de literatura se uma das maiores escritoras brasileiras não podia sobreviver dos direitos de seus livros.

Ela era cheia de perguntas, curiosa de tudo. Lembro que falamos que era a curiosidade que nos movia, essa inquietação que não sossegava dentro da gente. Acho que nos reconhecemos nisso. E talvez foi por essa curiosidade que se aproximou de mim.

Clarice era uma mulher poderosa e extraordinariamente sábia. Era um mulher que impressionava, muito observadora e atenta e eu a via com puro encantamento.

Um raro ser humano que dava a impressão de viver de sensações e intuições, como se as palavras não lhe fossem suficientes para traduzir. Nem agora são para que eu possa agradecer esses momentos preciosos.

No ano seguinte, ela se foi para sempre.

BRUNA LOMBARDI

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