sábado, 13 de novembro de 2021


13 DE NOVEMBRO DE 2021
REFLEXÃO

SALVE JORGE

MÉDICA RELATA A EXPERIÊNCIA DE UM COLEGA DE PROFISSÃO QUE, COM CÂNCER, É SEU PACIENTE

Jorge possui um biotipo grande. Jorge é rabugento, mas gente boa. Jorge não é de explicitar seus sentimentos, mas se derrete feito manteiga. Jorge tem câncer. Jorge é médico. Jorge é meu paciente.

Nosso primeiro encontro não foi amigável. Jorge mostrava-se nervoso com sua estadia no hospital. Seu grau de irritação denotava o que seu conhecimento técnico teimava em negar. Pressentia que as novidades não seriam boas. Os respingos de sua ira para com o mundo me atingiram.

Expliquei-lhe o que ele já sabia, mas de uma forma organizada para que chegássemos ao diagnóstico o mais breve possível. As hipóteses mestras eram um linfoma agressivo, ou uma grave infecção. Infelizmente, a primeira confirmou-se.

Durante a biópsia de medula óssea, sob anestesia local, ficamos conversando - é uma tática para distrair o cérebro do desconforto trazido pelo procedimento. Jorge me contou de seus dois filhos e dos planos recentes, que incluíam trabalhar menos. Dizia-se receoso e solicitou a presença da esposa enquanto eu retirava uma amostra do interior de seu osso do quadril para análise. Contudo, não tenho certeza se ele segurou a mão dela enquanto eu trabalhava, como dissera precisar fazer.

Passaram-se alguns dias repletos de angústia até a confirmação definitiva do problema. A doença progredia em ritmo de galope, e um tratamento igualmente potente precisou ser iniciado. A partir da quimioterapia, um outro Jorge surgiu -- ao menos para mim. Ele aceitou que, dessa vez, encontrava-se do outro lado do jogo. Deixara de ser o técnico que decide para ser um centroavante que, mais do que nunca, era fundamental para o gol. Jorge, sabiamente, assumiu o papel de paciente.

Disciplinado e cordial, acatou as orientações como um soldado em batalha. Compreendeu, de maneira natural, que trocaria de lugar em mais uma atribuição de sua vida: permitiu que seu filho, um jovem tão determinado quanto protetor, cuidasse do pai. Desta forma, ambos aprimoraram modos diferentes de experimentar afeto.

Jorge e sua doce esposa encontraram uma forma peculiar de se mostrarem gratos - ao meu trabalho e à vida em geral.

Presenteiam-me com comida. Alimento com gosto de aconchego. Comida da casa da mãe, impregnada de afeto a cada garfada. Mantimentos de esperança.

São Jorge é considerado o Santo guerreiro. Meu paciente, decerto, tem se inspirado na história do padroeiro homônimo, uma vez que me confessou que tem revisto suas crenças: "que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam. Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar".

Como na oração a São Jorge, meu paciente luta por sua saúde de forma bela e serena, minimizando o estrago em seu entorno provocado por uma guerra ímpia. Coisas de Jorge.

RAFAELA KOMOROWSKI DAL MOLIN (*)

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