sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

31 DE DEZEMBRO DE 2021
EM DIA

ENTRE ANSIEDADE E INCERTEZA, A ESPERANÇA

E lá se vai 2021. Tenho 39 anos e não recordo de sentir um clima de expectativa tão grande pelo encerramento de um ano. É uma reprise do que havia sido o final de 2020, só que agora temperado com um cansaço maior, me parece. Depois de observarmos, por aqui, o pico de internações e mortes por covid-19, conseguimos avançar e consolidar a vacinação, que nos oferece a expectativa de superação dessa fase tão terrível da nossa história. Ainda assim, outros desafios despontam e nos inquietam, criando uma mistura de ansiedade pela superação de 2021 e a incerteza para 2022.

A gestão da pandemia no Brasil foi tenebrosa, bem sabemos. Foi preciso a instauração de uma CPI para investigar a insistência do governo federal em medicamentos inúteis para tratar a doença e também o atraso inacreditável na aquisição de vacinas, entre outras coisas que ali surgiram. Nos horrorizamos com tudo que foi relatado. Estamos exaustos não apenas pelo curso natural da pandemia, mas especialmente pelo modo como fomos guiados através dela. Queremos arrancar a última página do calendário para superar isso.

No entanto, 2022 não se oferece leve. Primeiro, ele traz as cicatrizes dos últimos dois anos. São mais de 600 mil famílias que perderam alguém, além de outros milhares de pessoas que seguirão se recuperando das sequelas da doença. Além disso, estamos em fase de lidar com os desafios socioeconômicos que se apresentam. A combinação de inflação alta, renda baixa, desigualdade e pobreza não será fácil de ser enfrentada.

Precisaremos de um olhar bastante especial sobre os mais vulneráveis. A solidariedade e a cobrança dos nossos governos por assistência social de qualidade são exercícios que devemos estar dispostos a fazer em 2022. Estes últimos dois anos foram duros para todos nós, mas em diferentes níveis. Precisamos, agora, de um esforço para buscar quem ficou para trás.

Se temos desafios e incertezas para 2022, não significa que não temos esperança. Parte do frio na barriga nesta virada é alívio, outra parte é a incerteza pelo desconhecido depois de tempos tão difíceis. A esperança é o sentimento nobre e confortador que nos motiva a olhar com otimismo para um novo ano. Feliz 2022!

31 DE DEZEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Uma surpresa na virada do ano 

O Ano-Novo de 19 para 20 nós decidimos passar em Nova York, eu, a Marcinha e o Bernardo. Sabíamos que em poucos meses voltaríamos em definitivo para o Brasil, então queríamos nos despedir da Big Apple com alguma cerimônia.

Visitamos Nova York diversas vezes, nos seis anos em que moramos nos Estados Unidos. Eu brincava que, lá, Nova York era a minha Gramado. Era uma viagem fácil, sobretudo de trem, que é, de longe, o meu meio de transporte favorito. Muitas vezes, íamos e voltávamos no mesmo fim de semana. Mas, naquele final de ano, resolvemos ficar no mínimo cinco dias.

Reservei um belo restaurante para a ceia de Réveillon, só que, no dia 31, a Marcinha descobriu o preço que pagaríamos, emitiu um assustador grito de horror econômico e não parou mais de reclamar. Era muito caro, poderíamos comer bem em um lugar muito mais barato e fazer outras coisas com o dinheiro e tudo mais.

Em nome da harmonia familiar, cedi. Cancelei a ceia cara, fiz uma reserva às pressas em uma cantina do Little Italy e para lá fomos. Foi um bom jantar e tal, mas faltava um pouco de animação. Por volta das 22h, já tínhamos terminado a sobremesa e estávamos bebericando uns drinques. Aí propus:

- Quem sabe nós vamos caminhando até o Piccola Cucina para ver como está a festa por lá? Quem sabe nos deixam entrar?

Há três Piccola Cucina nas imediações do SoHo, todos dos mesmos donos italianos. São restaurantes, mas também são bares. Em certo momento, o volume da música aumenta provocadoramente e todos se levantam e dançam, inclusive os funcionários e os proprietários. É um dos lugares de que mais gosto em Nova York. Havia tentado fazer reserva lá, mas os três estavam lotados. Quem sabe agora, no improviso, sem precisar jantar, desse sorte?

Assim, nos pusemos em marcha para o Piccola Cucina. As ruas do SoHo estavam vazias e, embora fizesse frio, não era uma temperatura insuportável. A massa ignara, centenas de milhares de almas, se espremia na Times Square, esperando para ver aquela bola descer. Se você é como eu e, mesmo em tempos não pandêmicos, não gosta de aglomerações, evite de todas as maneiras ir à Times Square no dia 31. No começo da tarde já há farofeiros internacionais procurando um lugar estratégico para se instalar a fim de ver a bola. Eles ficam lá nove, 10, 12 horas, de pé, na rua, às vezes debaixo de chuva ou de neve só para ver a bola. O comércio fecha, a polícia impede o acesso a determinadas ruas, a maior atribulação por causa da maldita bola.

- Pelo menos nós estamos longe daquela bola - disse para a Marcinha e o Bernardo, enquanto ouvíamos nossos passos ecoando pelas ruas desertas do SoHo.

Enfim, chegamos ao Piccola Cucina. Um dos donos estava à porta, creio que fumando. Fui falar com ele. Expliquei que eu, minha mulher e meu filho queríamos passar a virada do ano ali e...

Ele nem me deixou terminar.

- Entrem! Entrem! - gritou, sorrindo e abrindo a porta.

O Piccola é mesmo pequeninho. Há um balcão e, diante dele, umas poucas mesas. Sentamos em torno de uma e o proprietário já nos serviu champanhe.

- Por conta da casa! - anunciou.

Havia um grupo de italianas bem ao nosso lado. Elas estavam de pé, dançavam e cantavam. Alguém nos deu uns óculos de 2020, nossos olhos ficavam atrás dos zeros luminosos. Outros pequenos grupos também estavam de óculos e dançando e cantando. Logo, nós dançávamos e cantávamos também. O dono do bar subia nas cadeiras e avisava que ia servir mais champanhe e lentilha e, depois, uns tiramisus para deixar a vida mais doce.

Quando o momento da virada do ano chegou, a música parou e alguém levantou o volume da TV, que transmitia, exatamente, a queda da bola na Times Square. Nos perfilamos diante do aparelho e começamos a fazer a contagem regressiva em inglês, italiano e português, tudo misturado:

- Ten! Dez! Dieci!... Nove! Nine!... Otto! Oito! Eight!

Ao chegarmos no zero, as rolhas dos champanhes estouraram, a bola desceu e todos nos abraçamos e nos beijamos. Em seguida, alguém começou a cantar New York, New York:

- Start spreading the news...

E todos cantamos em coro, todos, americanos, italianos, brasileiros e talvez gente de outras nacionalidades que se encontrou por ali. Foi emocionante, foi um tributo àquela grande cidade, àquele grande país, à raça humana e a um sentimento de felicidade que nos unia, mesmo que cada um viesse de um lugar diferente. Foi algo bom, que nos encheu o peito de alegria e otimismo e esperança no futuro.

Assim começou 2020. Nós nem fazíamos ideia do que viria a seguir.

DAVID COIMBRA

31 DE DEZEMBRO DE 2021
CARPINEJAR

Nossa Lya Luft 

Lya Luft morreu.

Para quem não entende a gravidade desses sinos tocando em Porto Alegre na manhã de quinta (30/12), é como perder Erico Verissimo de novo.

É se despedir de uma joia da literatura intimista. É um vazio insubstituível.

Lya que era clássicos: As Parceiras, Reunião de Família e Quarto Fechado renderem peças e teses.

Lya que era universal a todas as idades, com 31 livros entre romances, coletâneas de poemas, crônicas, ensaios e infantis.

Lya que era moderna. Tornou as suas reflexões sobre perdas e ganhos um best-seller: vendeu mais de 1,5 milhão de exemplares e foi traduzido em 13 países. Permaneceu por 113 semanas no topo da lista dos mais vendidos.

Lya que abriu caminho para o protagonismo feminino na literatura, mostrando que ela não devia ser uma mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa.

Lya que traduziu Rilke, Virginia Woolf, Herman Hesse e Thomas Mann, dialogando com a tradição.

Lya que combatia a ideia de que se casar era ser feliz para sempre, mas batia na tecla de que se casar era continuar sendo.

Lya que nos advertia a agir da mesmo forma sozinhos ou acompanhados.

Lya que compreendia o quanto a coragem já residia em erguer a asa de uma xícara de café e dar bom-dia, que as maiores alturas e vertigens são por dentro de nós.

Lya que nos ensinou a não ficar parados no tempo chorando as nossas dores, ela que sofreu o pior dos lutos: a perda do filho.

Lya que nos pedia para avançar apesar das fragilidades, pelas fragilidades.

Lya que amou seus fantasmas como se fossem anjos.

Lya que escapava nas horas vagas para as árvores da infância, convivendo com gnomos e duendes. Ela não somente acreditava neles como eles acreditavam nela.

Lya que não tinha só um amigo imaginário, porém a sua família inteira.

Lya que nos transformava com o seu olhar e nos fixava com o seu pensamento.

Lya que consultava os mapas para seguir o imprevisto.

Lya que sempre dizia que ser amoroso não é estar inteiramente disponível.

Lya que criou casulos com o fio de seda da sua melodia, dançou com as sombras, descortinou a beleza da melancolia.

Lya que subia a escada rolante no sentido contrário, para nos ilustrar o que é a esperança.

Lya que não trocava a maturidade pelas ilusões, que encostava os lábios nas janelas para beijar o vento.

Lya que suportava a vida sem se submeter, aceitava a vida sem se humilhar, entregava-se à vida sem renunciar a si mesma. Lya que foi lúcida até o último suspiro, respeitando as frutas de cada estação, de cada idade.

Lya que nos lia como ninguém. Lya que escrevia as suas obras a quatro mãos: ela e o destino. Agora, o destino segue a escrita para imortalizá-la.

Leia sobre a repercussão da morte de Lya Luft entre personalidades brasileiras nas páginas 20 e 21

CARPINEJAR

31 DE DEZEMBRO DE 2021
ARTIGO

ENFIM, TUDO VAI SER COMO ERA ANTES

O ano era 2015 e, diante de um déficit que ameaçava paralisar o Rio Grande do Sul, o governo estadual propôs aos gaúchos um enorme sacrifício: aumentar as alíquotas de combustíveis, telefonia e energia de 25% para 30% e a básica de 17% para 18%. A Fecomércio-RS foi contra. O ajuste, ao nosso ver, deveria ocorrer pela redução da despesa. Entretanto, a Assembleia Legislativa aprovou a medida.

Ficou combinado com todos os rio-grandenses que em 1º de janeiro de 2019 tudo voltaria a ser como era antes. Entretanto, um novo governo foi eleito e foi posto ser necessário manter o esforço por mais tempo. Assim, encaminhou-se um pedido de prorrogação. Mais uma vez, a Fecomércio-RS foi contra, mas a Assembleia assentiu outra vez.

A nova combinação passou a ser de mais dois anos de alíquotas elevadas. Mas que ficássemos todos tranquilos, afinal, em 1º de janeiro de 2021, tudo voltaria a ser como era antes. Passou 2019 e chegou 2020 com a pandemia, restrições à atividade econômica, e uma proposta de reforma que preservaria ad aeternum o ganho de arrecadação do aumento das alíquotas, ainda que com uma reestruturação da carga. Mais uma vez, fomos contra. Dessa vez, a proposta não prosperou, mas o governo conseguiu garantir mais um ano de alíquotas de combustíveis, telefonia e energia em 30% e a básica em 17,5%. Em 1º de janeiro de 2022, tudo, enfim, voltará a ser como era antes, há muito tempo. Um antes já quase esquecido.

O esforço infringido aos gaúchos ao longo de todos esses anos transferiu aos cofres estaduais bilhões de reais. Atualmente, a atividade mostra sinais de perda de tração, a inflação corrói o poder de compra e os juros em alta vão inibir ainda mais o consumo e o investimento. A redução do ICMS vem em ótima hora, mas é importante lembrar que chega atrasada.

Não há dúvidas de que manter o orçamento equilibrado sempre vai ser uma prioridade, mas há formas para promover o equilíbrio. Ajustar pelo lado da receita é sempre mais fácil para quem arrecada, mas é muito difícil para quem paga. E nós pagamos muito e por muito tempo. Enfim, esse tempo acabou. Que os próximos governantes não nos peçam novos sacrifícios, mas sim façam a sua parte: controlem as despesas, o que deveria ter sido feito lá atrás, desde o princípio.

Presidente da Fecomércio-RS - LUIZ CARLOS BOHN

31 DE DEZEMBRO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

O NOVO ANO

Até pouco tempo atrás, em todo final de dezembro explodiam previsões sobre o ano novo. Qualquer arremedo de oráculo, fosse cartomante, vidente ou astrólogo, disputava um lugar ao sol em busca do sonho de adivinhar ou prever os futuros 365 dias. Mas os sonhos, sonhos são e concluem sempre num despertar que, mais do que tudo, mostra que estamos vivos.

O ano de 2022, porém, marca tantos centenários que basta recordá-los para recobrar o ânimo dos tempos atuais, em que a covid planetária convive, no Brasil, com a insensatez dos governantes. Por isto, relembro as datas.

Este 2022 marca os 200 anos da Independência do Brasil, mas continuamos com o espírito e a visão colonial. Seguimos adotando o que seja estrangeiro e, em todas as áreas, temos vergonha de criar. Estamos perdendo até o idioma, usando desnecessários termos ingleses no dia a dia.

Neste janeiro, festejamos os cem anos do nascimento de Leonel Brizola. Figura sem par na política do país em coerência e lucidez, fez da escola e da educação o motor do desenvolvimento. Como governador, uniu o Rio Grande no movimento da Legalidade e derrotou o golpe de Estado urdido em 1961.

A politicalha atual tenta levá-lo ao esquecimento. Em Porto Alegre, só um pequeno viaduto (sempre em obras e, assim, inoperante) tem seu nome. Fecham-se escolas e o magistério vive de migalhas, ao contrário dos tempos de Brizola.

Este 2022 marca o centenário da Semana de Arte Moderna, iniciada em São Paulo e que, em 1922, rompeu a viciosa modorra de copiar a Europa na literatura, na pintura e na arquitetura e buscou raízes no Brasil real.

No Brasil musical, porém, nada marca tanto os últimos cem anos do que aquele 1922 em que o chorinho Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro, foi considerado pernicioso e atentatório aos "bons costumes". Aquele "ah, se tu soubesses como eu sou tão carinhoso" foi visto como extravagante e pernicioso, algo que agora, cem anos depois, soa como belo e sem malícia.

Hoje, maliciosa, extravagante e absurda é a postura do governo federal sobre a vacinação das crianças contra a covid-19. De um lado, o presidente Jair Bolsonaro declara que "não vacinará a filha de 11 anos", e o ministro da Saúde (com apoio do chefe) inventa "consultar a população" para que leigos opinem sobre o que não conhecem. A vacina é um preventivo para evitar a doença, foi aprovada pela Anvisa e vem sendo usada em crianças nos EUA e na Europa.

FLÁVIO TAVARES

31 DE DEZEMBRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

RECUPERAÇÃO FISCAL

Assim como a crise financeira do Estado é resultado de décadas de gestões perdulárias ou que apenas procrastinaram necessárias medidas estruturantes, não seria crível imaginar uma solução para o altíssimo endividamento em um estalar de dedos. É dentro desta perspectiva que a proposta de adesão do Rio Grande do Sul ao regime de recuperação fiscal (RRF) do governo federal deve ser analisada. Não é uma solução dos sonhos, mas é a factível, sem contar com saídas mágicas.

As condições impostas pela União, de fato, são duras. As exigências incluem limitação a reajustes de salários, concursos somente para repor saída de servidores, proibição de concessão de novas vantagens para o funcionalismo e de benefícios tributários, entre outros pontos. Mas, dado o nível do passivo do Estado, apenas um plano robusto e de longo prazo, centrado na absoluta austeridade fiscal, é capaz de inspirar uma perspectiva de futuro para a máquina pública gaúcha e, com o fim da década como horizonte, projetar dias de equilíbrio das colunas de despesa e receita, com o governo sendo capaz de investir, pagar salários em dia e bem atender os cidadãos em áreas essenciais como saúde, educação e segurança.

A melhora na condição financeira do Estado nos últimos meses não deve iludir. As reformas administrativa, da Previdência e as privatizações tiveram impacto positivo, mas são apenas um ponto de partida. Ainda há muito a modernizar na pesada e obsoleta estrutura do Estado, com novas desestatizações, adaptações e digitalização de serviços, tornando-os mais baratos e eficientes.

O Rio Grande do Sul, por outro lado, experimentou um significativo aumento da arrecadação, mas boa parte é relacionada à inflação. É preciso lembrar que desde 2017, por força de liminar, o Piratini não paga as parcelas da dívida com a União. É um estoque de R$ 70 bilhões. No caso dos precatórios, mais R$ 16 bilhões. O fôlego recente permitiu cumprir compromissos mais urgentes e colocar salários em dia, mas o endividamento segue sufocante. Novas alíquotas de ICMS, mais baixas, também começam a vigorar em 2022, com impacto na arrecadação.

O Estado, agora, aguarda a resposta do governo federal para a proposta de adesão. Se aceita, como se espera, o passivo será refinanciado. Com um empréstimo de R$ 3 bilhões, o governo gaúcho pretende renegociar precatórios. A saída definitiva da crise, portanto, é longa e árdua. Requer sacrifícios compartilhados. Mas percebe-se, felizmente, compreensão dos demais poderes e órgãos com autonomia administrativa do Estado, que sopesaram vantagens e desvantagens e, de maneira unânime, apoiam o acordo. A figura do remédio amargo foi largamente utilizada para facilitar entendimentos. 

Com unidade e disciplina, o Rio Grande do Sul reúne plenas condições de vencer este e outros desafios. Assim, ao fim do período de vigência do regime, enfim poderá oferecer aos gaúchos, e mesmo ao funcionalismo, a higidez financeira duradoura capaz de fazer o poder público um agente parceiro do desenvolvimento econômico, e não um peso para a sociedade e os setores produtivos.


31 DE DEZEMBRO DE 2021
ANO-NOVO

"Esperança" é a palavra eleita pelos brasileiros para 2022

Termo tem sido recorrente desde a primeira pesquisa, realizada em 2017, mas ganha novo sentido a partir da pandemia

Os brasileiros querem ser mais otimistas em 2022. Pelo menos, este é o resultado do levantamento feito pela Consultoria Cause e o Instituto de Pesquisa Ideia, que ainda apontou vacina como o termo de 2021. Dos 1,2 mil entrevistados entre 6 e 9 de dezembro, 17% escolheram esperança a palavra para o próximo ano, seguida de saúde (10%) e recomeçar (7%). Para especialistas em saúde mental consultados por ZH, mais do que a expectativa condicional de ocorrer algo bom, é preciso também agir para a roda da vida seguir girando.

Esperança tem sido uma palavra recorrente entre os brasileiros desde a primeira pesquisa, realizada em 2017, segundo o economista Maurício Moura, fundador do Instituto de Pesquisa Ideia e professor da Universidade George Washington. Somente entre 2018 e 2019, mudança foi o termo mais lembrado.

- Na verdade, esperança é um sentimento do brasileiro. É bastante particular da opinião pública brasileira a sensação de que o futuro será melhor do que o presente. Na América Latina, em geral, a questão da expectativa do futuro é recorrente. Ao contrário da Europa, onde esta visão é mais pragmática e as pessoas não esperam um futuro melhor do que o presente - destaca Moura, apostando em inflação como a palavra de 2022.

Para o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), a seleção de um termo que defina o ano permite às pessoas conversarem sobre o futuro, se reconhecendo numa mesma palavra. Porém, ressalta a ambiguidade existente na escolha dos brasileiros.

- Esperança é um termo ambíguo e pode remeter ao esperançar, expressão de Paulo Freire para designar um tipo de desejo, ou designar um tipo de espera, de expectativa condicional para que algo aconteça e, só então, possamos agir em conformidade com o nosso desejo - ressalta.

Ainda assim, Dunker considera necessário ter esperança, expectativa, desejos ou, de uma maneira mais abrangente, a chamada perspectivação do futuro.

Mas há os que desaprovam por completo a palavra como um termo positivo. Em artigo relacionado ao novo ano e publicado no Brazil Journal, o estrategista de comunicação e embaixador global da Unesco, Nizan Guanaes, fez questão de escrever sobre a desesperança, por não acreditar que o contrário dela seja capaz de mudar algo nos rumos da humanidade. Nas palavras dele, a esperança leva o ser humano a "terceirizar soluções que o mundo precisa urgentemente". A provocação de Guanaes gerou uma onda de compartilhamento do texto nos meios empresariais.

Significado

O psiquiatra Nélio Tombini, diretor da clínica Psicobreve, também segue na mesma linha de pensamento de Guanaes.

- Vejo a esperança como uma certa passividade diante da vida, e isso é muito da nossa cultura. Quando falamos esperança é como uma espera de que algo vai ocorrer. Alguém ou algo fará algo pra mim. O melhor seria se as pessoas dissessem "em 2022 farei de tudo para que a minha vida possa ser melhor", "espero me cuidar, não que alguém faça por mim" - argumenta.

Assim como Dunker, Tombini lembra do educador e filósofo Paulo Freire e do verbo esperançar que, para ele, poderia ser pensado para o próximo ano. Em sua obra Pedagogia da Esperança (1992), Freire, patrono da Educação Brasileira, cita que "? É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo."

ALINE CUSTÓDIO

31 DE DEZEMBRO DE 2021
ANO-NOVO

Especialistas veem "razão" para a escolha

Psicanalista e escritor, Mario Corso faz questão de dizer que gosta da palavra esperança e salienta que os brasileiros têm razão em pensar nela como símbolo para 2022 depois de quase dois anos depressivos, como ele mesmo define.

- A vontade de viver se mistura com o que seja esperança, na falta de um conceito melhor. Não brigaria com esta palavra. A pandemia transformou a vida em algo difícil. Foram dois anos em que perdemos pessoas, empregos, negócios, amores, vínculos, empobrecemos no sentido econômico e nos laços de situações que não vivemos, encontros que não tivemos e festas que não aconteceram. Então, quando não temos nada, nos agarramos nesta força vital chamada esperança - afirma Corso.

Mesma perspectiva tem o psicólogo Fernando Elias José, especialista em psicologia cognitivo-comportamental. Para ele, esperança traz estímulo e perspectiva à vida, mas não pode ser de forma passiva.

- A esperança é capaz, sim, de mover o ser humano. Mas o indivíduo precisa agir, sem ficar esperando acontecer - completa.

A marca do brasileiro é a esperança, resume Samantha Sittart, especialista em psicoterapia psicanalítica e membro do grupo de pesquisa Envelhecimento e Saúde Mental.

- Nesse finalzinho de ano, acompanhei uma fala recorrente dos pacientes "espero que em breve possamos nos ver de novo sem as máscaras! Não vejo a hora!". Isso já demonstra um sopro de esperança de dias melhores, de um amanhã que possamos vislumbrar a nossa maior riqueza que é a nossa liberdade - argumenta.

Tanto Corso quanto Samantha fazem questão de alertar sobre a importância de se ter esperança, mas sem viver apenas de planos e promessas.

- A esperança não é enganosa. Enganoso é o discurso que se usa disfarçado de esperança para construir uma promessa - destaca Corso.

- Precisamos nos responsabilizar por nossas atitudes e não apenas terceirizar ao outro, ao próximo, ao adversário político, a Deus e ao Universo. Precisamos ser pessoas responsáveis por nossas atitudes - completa Samantha.

Questionados sobre qual palavra gostariam de destacar para 2022, Corso foi o único a citar esperança. Dunker e Tombini reforçaram esperançar. O psiquiatra gaúcho ainda citou saúde, principalmente relacionada à busca pela saúde mental. Elias José escolheu fé, não ligada à religião, mas sugerindo que as pessoas voltem a acreditar na vida de uma forma geral. E Samantha lembrou de amor, defendendo ser este o ponto de partida para nos tornarmos pessoas mais respeitosas e tolerantes às diferenças: amar a si mesmo para amar o próximo.


31 DE DEZEMBRO DE 2021
LITERATURA

Adeus a Lya Luft

Escritora gaúcha morre aos 83 anos, deixando mais de 30 livros, como ?As Parceiras? e ?Perdas & Ganhos?, e uma legião de admiradores

Considerada uma das mais importantes escritoras contemporâneas, a gaúcha Lya Luft morreu nesta quinta-feira, aos 83 anos, em casa, em Porto Alegre, durante o sono. Ela deixa o marido, o engenheiro de transportes Vicente de Britto Pereira, os filhos Susana e Eduardo, professor de Filosofia, e sete netos e netas. Também foi mãe de André, engenheiro agrônomo, falecido em 2017.

Natural de Santa Cruz do Sul, a autora tinha sido diagnosticada com um melanoma - agressivo câncer de pele - havia sete meses (antes, em 2019, teve de passar por uma angioplastia de urgência, após sofrer um infarto agudo do miocárdio). Quando a doença foi descoberta, já estava em estado metastático, disseminada pelo organismo. A romancista, contista, poeta e cronista passou por tratamento e chegou a ser internada algumas vezes no Hospital Moinhos de Vento, na Capital. De acordo com o oncologista Guilherme Geib, um dos médicos que a acompanharam desde junho, Lya foi submetida a imunoterapia (quando o sistema imunológico é fortalecido para combater o câncer), cirurgias e radioterapia. Recebeu a última alta no dia 21 de dezembro. Desejava morrer em seu apartamento.

Vizinha de porta da mãe, a filha Susana Luft, médica pediatra, comentou:

- Uma pessoa iluminada, feliz, alegre, apaixonada pelos netos. Tudo o que pôde ensinar de amor e companheirismo ela ensinou. Era uma "galinha choca", voltada para a família, muito calorosa e amorosa. Para nós, ela foi o ideal. Sempre foi muito amada. Para as letras, nem preciso dizer.

Gnomos

Colunista de GZH e dona de uma obra premiada que conta com 31 títulos, Lya Luft transitou por vários gêneros: romances, poemas, contos, crônicas, ensaios, infantil, livro de memórias. Sempre com uma imaginação fértil, de quem via gnomos na infância - e, de certo modo, não os deixou no passado.

- Eu era uma criança de muita imaginação. Não tinha um amigo imaginário, mas uma família inteira, todos pequeninhos. Sentava no peitoril da janela no meu quarto e conversava com eles. Todos de verde, com gorrinhos. Provavelmente, tirei essa imagem de um livro. Mas, para mim, eram reais - contou em entrevista concedida às vésperas dos 80 anos.

Mais recentemente, em uma coluna em GZH, Lya juntou as memórias da infância ao tema da finitude: "Não quero brincar de morrer, como em criança fazia, me deitava na cama, no assoalho, tentando ficar assim por um pouco de tempo que fosse: não conseguia muita coisa. Achava morrer muito ameaçador, e se nunca mais eu conseguir acordar desse sono maluco? Melhor pegar um dos meus amados livros, e entrar naquelas histórias".

A sua visão singular do mundo lhe deu as munições necessárias para carregar os seus livros com personagens complexos, densos, melancólicos e divertidos. Daqueles que surgem apenas de mentes que não têm medo de viajar e, durante estes passeios pelo terreno da imaginação, colher saborosos frutos que formam seres humanos únicos. Mesmo que eles estejam restritos às páginas de um livro.

CARLOS REDEL LARISSA ROSO

31 DE DEZEMBRO DE 2021
+ ECONOMIA

Pássaro? Avião? Não, é um superávit

É tão raro ver resultado positivo na contas públicas no Brasil que é preciso olhar duas vezes para ver se é verdade. O Banco Central (BC) anunciou superávit primário de R$ 15,034 bilhões em novembro do chamado "setor público consolidado" (governo central, Estados, municípios e estatais, com exceção de Petrobras e Eletrobras). Foi o melhor resultado para o mês desde 2013, quando chegou a R$ 29,745 bilhões. A maior contribuição veio de Estados e municípios, de R$ 11,743 bilhões.

Para lembrar, superávit primário ocorre quando, depois de pagas todas as despesas, sobra um pouquinho para amortizar a dívida pública. Por isso, é "primário", por não incluir os custos do endividamento. É um conceito ardiloso, porque induz a pensar em "sobra", quando só diminui um grão de um rombo gigante.

No orçamento de 2022, só a despesa com a dívida federal é de R$ 1,88 trilhão, 39,8% do total de R$ 4,72 trilhões. O secretário do Tesouro Nacional, Paulo Valle, diz que é possível fechar 2021 com superávit, mas só se saberá em janeiro. É um resultado excepcional em vários sentidos, inclusive o estrito: um ponto fora da curva.

Às 10h do dia 1º de janeiro de 2022, abrem-se as portas do novo McDonald?s da Capital, no bairro Alto Petrópolis. Na Avenida Protásio Alves, 7.005, a unidade funcionará todos os dias, das 10h às 23h, no balcão e no drive-thru, além do serviço de entrega, o McDelivery.

Tem 300 m2 de área e capacidade para 86 pessoas. Com esse acréscimo, a rede passa a ter 53 unidades no RS. Foram gerados cerca de 50 empregos diretos, incluindo 10 oportunidades de primeiro emprego, duas vagas para pessoas com deficiência e dois aprendizes.

A operação já nasce nas regras do McProtegidos, iniciativa da rede aplicada no Brasil para conscientizar sobre o respeito ao distanciamento social, além de reforçar medidas de higiene para garantir ambien­te seguro. Tem placas de acrílico nos balcões e no drive-thru, além de dispensers de álcool ge e funcionários mascarados, no bom sentido.

+ ECONOMIA

31 DE DEZEMBRO DE 2021
EDUARDO BUENO

Ano novo, vida velha 

Entra ano, sai ano, é sempre a mesma conversa mole: a hora das previsões.

Então sem mais delongas, de turbante na cabeça e bola de cristal na mesa, vamos a elas. Prevejo um ano turbulento, com eleições polarizadas num país dividido, inquietação nos quartéis, artistas revoltosos, muita gente celebrando a Independência e o Brasil disputando a Copa. Prevejo ainda uma enxurrada de fake news, seguida pela vitória dum presidente odiado por muitos. E evidentemente, prevejo um terremoto.

Um terremoto? Sim, e digo mais: um terremoto real, não metafórico. Mas deixo isso para o fim, embora tudo indique que será no começo.

Com relação às eleições, afirmo que um ex-presidente popular e populista enfrentará o candidato conservador e retrógrado. Fake news vão abalar o pleito - em especial após serem confirmadas por peritos, apesar de serem mesmo falsas. O turbilhão se refletirá nos quartéis e militares sairão às ruas para tentar um golpe. Ele será abortado com sangue. Já a Copa será disputadíssima, mas o Brasil vai sair campeão - graças, é claro, à escandalosa ajuda dos juízes. Um escritor famoso vai se irritar com a fortuna paga aos boleiros e detonará a seleção. Artistas farão um grande festival e o aniversário da Independência emocionará os patriotas.

Bom, é (ou foi) assim: o populista Nilo Peçanha, que fora o primeiro (e até hoje único) negro a presidir o Brasil, enfrentou o conservador Arthur Bernardes nas eleições de 1922. Perdeu, embora Bernardes fosse odiado pelo povo. Indignados com cartas (falsas) em que Bernardes atacava os militares, 18 deles tentaram um golpe. Eram os 18 do Forte. Quatorze foram mortos. O Brasil ganhou a Copa Sul-Americana só porque os juízes roubaram a seu favor e o escritor Lima Barreto se indignou com o prêmio pago aos jogadores. A Semana de Arte Moderna mudou a história da cultura no Brasil, mas não chegou aos pés da Exposição Internacional do Centenário da Independência, que estremeceu o Rio de Janeiro.

Ah, por falar nisso, terremoto com mais de cinco graus na escala Richter estremeceu São Paulo em 27 de janeiro de 1922. Entra ano, sai ano, é a mesma conversa mole pois povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la. Estou só esperando o terremoto.

EDUARDO BUENO
31 DE DEZEMBRO DE 2021
INFORME ESPECIAL

O amor 

Todas as noites, é o mesmo ritual. Depois do banho e da última mamada da Maya, fico 20 minutos com ela no colo, para ajudar na digestão. O apartamento está escuro e quieto, porque é importante ensinar aos bebês a diferença entre o dia e a noite. Então a Jaqueline me passa a Maya, já mais pra lá do que cá, depois do esforço da sucção e com a barriguinha cheia de leite. Me ponho a caminhar pela sala, sentindo o corpinho dela amolecer, encostado no meu. Esses 20 minutos se transformaram em um dos melhores momentos do meu dia. Tenho ideias, projeto o futuro, penso no que fiz e no que faltou fazer. De um jeito calmo, terno e protetor. Largo a Maya no berço e sinto então o meu próprio cansaço. Vou dormir leve, feliz, completo.

Com mais de 400 startups, Porto Alegre avança como polo de inovação

Cidade, que em março comemora 250 anos com uma feira internacional voltada à nova economia, abriga um ambiente em aceleração, com ideias, produtos e serviços. São modelos de negócios sendo explorados em empresas embrionárias, hubs temáticos e parques tecnológicos. O desafio é formar mais pessoas para atuar neste mercado em expansão. | caderno Doc

Um livro ainda não escrito 

Vai entender. A que eu cuidava, murchou. A que eu esqueci, cresceu.

Duas plantas tiveram trajetórias apostas durante o ano aqui no meu apartamento. A primeira estava em uma estante. Todos os dias eu passava por ela, olhava, dava oi e tirava as folhas secas. Regava duas vezes por semana. Tudo ia bem até que, em novembro, subitamente, ela secou. Do nada. Tentei mudar de lugar, regar mais, regar menos.

Não adiantou.

Faz algum tempo ganhei uma planta com flores, dessas que se compra no supermercado, em um vaso de plástico. Cumprindo um ciclo curto, as flores murcharam, as hastes secaram, as folhas caíram. Cortei tudo e depositei o vaso, só com terra, dentro de um deck de madeira, sem luz e sem água. Minha ideia era, quem sabe, usá-lo no futuro para uma nova muda. Botei lá e esqueci.

Meses depois, em novembro, durante uma faxina, abri a porta na parte inferior do deck e deparei com três grandes caules verdes, que nasceram apenas com as réstias de sol e de chuva que escorriam pelas frestas estreitas da madeira. Agora, tenho três flores lindas, sem que eu nada tenha feito para isso. Parece nome de livro: As Flores do Esquecimento. Um dia, ainda vou escrever. Acho até que já comecei.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021


30 DE DEZEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Por um 2022 dourado

É preciso tomar cuidado neste dia 31, que vem vindo, e mais ainda no dia 1º, que o sucederá. Porque há quem diga que aquilo que acontece nessa data se repetirá o ano inteiro.

Foi exatamente devido a essa crença que uma turma lá do IAPI passou a madrugada de um 1º de janeiro dos anos 70 jogando bola. A ideia era de que, com essa estratégia, eles jogariam bem durante todo o ano seguinte. Ficou famosa essa história. A todo momento alguém perguntava:

- Sabia que o pessoal do Bloco 1 passou a madrugada da virada do ano jogando bola? Será que vai funcionar? Será que o time deles vai ficar bom?

O Bloco 1, no caso, era da Coorigha, que ficava, e fica ainda, na baixada da Plínio. Não lembro se o time deles melhorou. Tenho de investigar. Se funcionou, vou sugerir o método para a Dupla Gre-Nal, que, há meses, vem necessitando da ajuda das forças transcendentais no seu futebol. Queria ver esses caras tendo de jogar na madrugada do dia 1º.

Descobri, também, que a lua da virada do ano será minguante. Isso significa que tudo o que você pedir nessa noite minguará, ao invés de vicejar. A saída é fazer desejos reversos. Em vez de pedir mais amor, você pedirá menos sofrimento; em vez de pedir mais saúde, você pedirá menos doenças. Não é muito positivo, mas a lua manda, o que é que vamos fazer?

O importante é prestar atenção a todos os detalhes para que tudo dê certo no ano que vem. É preciso pular sete ondinhas? Pularei. É preciso comer 12 uvas? Comerei. Lentilhas? Eu mesmo faço. Sou bom em cozinhar lentilhas, por Deus que sou. O segredo é não ter pressa. Coloco costelinha de porco defumada na lentilha e fico mexendo a mistura com uma colher de pau, para que não grude no fundo da panela. Todos os ingredientes que acrescentei antes vão se mesclando, vão se tornando uma coisa só. Enquanto isso, a carne da costelinha se desgruda do osso e também vai se amalgamando ao resto da alquimia. Então, tiro, com uma colher, os ossos descarnados e continuo mexendo docemente, sem pressa, talvez assobiando Jealous Guy, do John. Em algum tempo, teremos um creme borbulhante, perfumado, saboroso, que você comerá aos suspiros.

Sim, senhor, sou bom de lentilhas.

Há ainda de se ter critério na escolha da cor da cueca. Cada cor tem um significado, é imprescindível pesquisar antes de decidir. Vá ao Google.

Qual terá sido o melhor ano da minha vida? O que eu fiz no primeiro dia deste ano? Ah, lembro dos tempos dourados em que eu era mais jovem. Tive anos divertidos, certamente, anos até gloriosos, pode-se dizer, mas sempre havia, no fundo do meu coração, uma certa inquietude, uma réstia de angústia, uma vontade de viver logo o meu futuro.

Agora, mais velho, estou vivendo o futuro pelo qual esperava. Alguns problemas de saúde que enfrentei me roubaram um pouco das energias e tenho responsabilidades que me aprisionam um tanto. Deveria ser ruim, em comparação com os anos fortes e livres da juventude, mas, curioso, não sinto mais aquela inquietação e nem uma lasca de angústia me machuca a alma. Essa serenidade madura decerto que é uma bela conquista. Como a adquiri? Não estou certo. Talvez com dor. Será que posso mantê-la, em 2022, sem nenhum laivo da dor que a produziu? Oh, Deus, preciso prestar muita atenção aos meus atos no primeiro dia desse ano dourado que virá.

DAVID COIMBRA

30 DE DEZEMBRO DE 2021
CAPA

As canções que 2021 deixou

Entre as músicas que bombaram em 2021 estão hits perigosamente chicletes, temas sobre divórcios, baladas, ex sendo chamado de sociopata, histórias ambientadas em vaquejadas, regravações e até rock (oi, sumido). Houve renovação, com novas caras se projetando no cenário mainstream e promovendo um frescor na indústria. Mas também se viu o retorno de rostos conhecidos, caso de Adele. Um ano que propiciou retomada dos shows presenciais por conta do avanço da vacinação contra a covid-19, o que trouxe um começo de volta à normalidade, mas que também foi marcado pela trágica morte de Marília Mendonça aos 26 anos.

A seguir, confira algumas músicas que chamaram atenção em 2021.

Esqueça-me Se For capaz

Após a trágica morte de Marília Mendonça, no dia 5 de novembro, seus sucessos reapareceram com força nos charts, chegando a acumular 64 músicas no top 200 do Spotify no Brasil. Ao longo das 24 horas após a notícia da morte da artista, Esqueça-me se For Capaz foi reproduzida 1,5 milhão de vezes pelo mundo, sendo a mais executada da cantora naquele momento. Parceria com a dupla Maiara & Maraisa, a faixa integra o álbum Patroas 35% e aborda o término de um relacionamento amoroso. Contudo, a música ganhou outro significado após a perda: será impossível esquecer Marília.

Meu Pedaço de Pecado

Uma pitada de forró de vaquejada, piseiro e, por que não, hip hop. Trata-se do modus operandi de João Gomes, 19 anos, uma das principais revelações da indústria musical brasileira em 2021.

O jovem pernambucano lançou seu disco de estreia este ano, Eu Tenho a Senha, além de um registro ao vivo em Fortaleza. Virou sensação: em agosto, Gomes chegou a ter três faixas entre as cinco mais ouvidas pelos brasileiros no Spotify - Se For Amor em 4º, Aquelas Coisas em 3º e Meu Pedaço de Pecado no topo.

Drivers License e Good 4 U

A cantora Olivia Rodrigo despontou. Um mês antes da maioridade, em fevereiro, ela se projetou com a balada Drivers License, a música mais ouvida no Spotify este ano no mundo.

Em maio, lançou seu primeiro disco, Sour, consolidando-se como o álbum mais executado no serviço de streaming em 2021 e chegando à primeira posição da Billboard 2000. Um dos destaques é a pop punk Good 4 U - com versos que acusam o seu ex de ser um sociopata por estar seguindo em frente, a faixa acabou tendo que ser creditada a Hayley Williams e Josh Farro, do Paramore, por conta das semelhanças com Misery Business.

Bipolar

O hit dos MCs Don Juan, Davi e Pedrinho foi pensado para o TikTok desde a sua concepção. Não deu outra: por conta de sua coreografia, o funk foi a música mais popular entre os brasileiros na plataforma, servindo para a criação de mais de 4 milhões de vídeos. No YouTube, o clipe acumula mais de 217 milhões de visualizações.

Batom de Cereja

O refrão fica na cabeça durante horas - talvez dias. "Eu bebo, ?cê beija, eu bebo, ?cê beija". Havia quem entendesse "eu bebo cerveja, eu bebo cerveja", o que é compreensível no contexto da letra. Hit da dupla sertaneja Israel & Rodolffo, a música foi impulsionada pela participação de Rodolffo no Big Brother Brasil 21. Enquanto o som do paredão toca, Batom de Cereja liderou a lista das mais ouvidas em 2021 pelos brasileiros em diferentes plataformas.

Easy on Me

Adele retornou com seu quarto álbum de estúdio, 30. O primeiro single foi Easy on Me, uma carta da cantora ao seu filho Angelo, hoje com nove anos, abordando seu lado da história no divórcio que enfrentou, tornando-se a música mais ouvida no período de um dia no Spotify, com 24 milhões de execuções. A Amazon Music também anunciou que esta foi a canção mais ouvida em um único dia na história do serviço. O single atingiu o primeiro lugar da parada global da Billboard, acumulando 178,2 milhões de streams e vendendo 136,3 mil downloads na semana de lançamento.

Beggin

Gravada em 1967 pela banda americana The Four Seasons, Beggin ganhou uma nova roupagem pelos italianos do grupo Måneskin após cinco décadas. A versão de 2017 levou rock ao topo das paradas mundiais este ano. A banda glam teve um empurrão das redes sociais para espraiar sua versão de Beggin pelo globo - foi a segunda música mais reaproveitada na criação de vídeos do TikTok, ficando atrás de Astronaut In The Ocean, do Masked Wolf.

Penhasco

Integrante do álbum Doce 22, que acumulou 30 milhões de execuções em uma semana, a balada Penhasco chamou atenção. A canção aborda o término do casamento de Luísa Sonza com Whindersson Nunes, falando de uma relação em que a cantora gaúcha se entregou, mas foi abandonada logo em seguida, caindo no abismo.

Natural de Tuparendi, noroeste do Estado, Luísa foi a artista gaúcha mais ouvida nas plataformas digitais em 2021. Para se ter ideia, no Spotify ela acumula 6,3 milhões de ouvintes mensais - à frente de nomes como Armandinho (1,6 milhão) e Elis Regina (1,9 milhão).

WILLIAM MANSQUE

30 DE DEZEMBRO DE 2021
CARPINEJAR

Os centavos da existência

Eu sou favorável aos momentos quebrados. Aos centavos da existência. Costumamos pensar que moeda não é dinheiro, e desperdiçamos os 10 centavos, os 50 centavos do nosso tempo. Jogamos fora, não guardamos, não damos valor. Só nos preocupamos com as notas, com o que podemos colocar na carteira ou no banco.

Queremos exclusivamente os momentos inteiros: os finais de semana, os feriados, os dias de descanso inteiramente disponíveis.

Ansiamos por nos encontrar com quem amamos nos períodos sem nenhuma preocupação, sem nenhum estresse, sem nenhuma urgência, e adiamos a nossa vida. Não somos presentes porque esperamos uma hora perfeita que nunca virá.

A idealização é adiamento. Fantasiamos uma compensação por todos os convites protelados. Projetamos sempre um cenário mirabolante, cinematográfico.

Não conseguimos cumprir o desejado, e a culpa aumenta, e a culpa nos paralisa. E, na ausência de contato, realizamos cada vez mais promessas impossíveis.

Morremos pela boca, morremos mentindo, morremos distantes: "vamos nos ver!" ou "vamos combinar algo lá em casa!".

Esquecemos de ler os livros comprados aguardando as férias, esquecemos de ler as pessoas aguardando as folgas.

Aproveite os 15 minutos, 20 minutos, para visitar alguém. Visita de médico também cura.

Em vez de sonhar com um banquete no almoço e no jantar, em vez de buscar os efeitos especiais, em vez de providenciar altos orçamentos e grandes mimos, em vez de bloquear a agenda, em vez de planejar viagens irreais, em vez de imaginar o que não tem condições devido ao excesso de compromissos, apareça para um cafezinho de surpresa. Apareça com um bolo ou um doce, apareça rindo, apareça pedindo desculpa por não avisar, apareça para colocar o cotovelo nos farelos de pão, apareça para brindar a companhia com as xícaras.

Seja mais passarinho com as migalhas no chão, e menos pássaro voando.

Priorize a imperfeição. Junte as moedas do seu cotidiano. É uma moedinha a mais para colocar no coração do outro, para depositar na confiança dos pais, dos filhos, dos amigos. Uma moedinha que não vale nada sozinha, mas que - com a frequência - formará fortuna na memória.

Não será como você imaginou, mas já será lembrança, já matará a saudade, já se mostrará acessível, perto, ao lado.

Como você vê que não tem muito tempo, deixa de fazer. Faça o possível, mas não deixe de fazer.

Nunca saberemos quando será a última vez. A despedida já pode ter acontecido.

CARPINEJAR

terça-feira, 28 de dezembro de 2021


28 DE DEZEMBRO DE 2021
CAPA

Viagem do Brasil à Coreia do Sul

Quem curte uma boa maratona de séries não pode reclamar de 2021. Com a pulverização de serviços de streaming, para qualquer lado que se olhava, uma produção seriada nova estava surgindo. Certamente, não faltaram episódios para quem quisesse os ver - não sobrou foi tempo para acompanhar.

Entre novidades e despedidas, sucessos se multiplicaram. Mas, afinal, quais foram as séries que mais se destacaram em 2021? Confira uma seleção de 10 delas:

Baseada nos quadrinhos criados por Robert Kirkman, de The Walking Dead, a série de animação foge do convencional do mundo dos super-heróis. A produção acompanha um adolescente aparentemente comum, Mark, que descobre que, assim como o seu pai, um famoso herói, também tem superpoderes. E isso se torna mais perigoso do que ele imagina.

Baseada no podcast Projeto Humanos, a série resgata os trágicos acontecimentos de 1992, quando houve o desaparecimento e a investigação policial da morte de um menino de seis anos, Evandro Ramos Caetano, em Guaratuba, no Paraná. Seu corpo foi encontrado com sinais de mutilação, atribuídos na ocasião a rituais de magia negra. A série documental conseguiu se tornar um dos programas mais populares do Globoplay e foi considerada uma das melhores produções do gênero no ano.

A série sul-coreana se tornou a mais assistida de todos os tempos na Netflix e um fenômeno da cultura pop. E foi de surpresa. A atração, que lutou por 10 anos para sair do papel, conquistou uma fama sem precedentes ao entregar uma trama tendo como protagonista um homem endividado que aceita participar de uma série de jogos de vida ou morte por dinheiro.

A série que introduziu o Universo Cinematográfico Marvel na televisão também conseguiu fugir da fórmula criada pelas produções que a antecederam no cinema. É visualmente interessante, por utilizar a história da televisão como pano de fundo de sua trama, ao mesmo tempo em que desenvolve dois dos mais interessantes personagens da Marvel nos cinemas: a Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen) e Visão (Paul Bettany).

Com o charme de Omar Sy como o protagonista, a produção se tornou a primeira série francesa a figurar no Top 10 da Netflix em diversos países. A atração teve suas duas primeiras levas de episódios lançadas no streaming em 2021, e a terceira parte já está sendo rodada. A história é uma atualização dos livros de Maurice Leblanc sobre Arsène Lupin, um ladrão extremamente inteligente e mestre dos disfarces.

A série brasileira conta a história de Cassandra, uma motogirl trans que tem o sonho de ser cantora e, sempre que pode, faz cover de Vanusa. Quando os perrengues começam a se ajeitar, ela descobre a existência de um filho, fruto de um relacionamento do passado, antes de sua transição. A produção entrega, em apenas cinco episódios de meia hora, uma história recheada de acolhimento e afeto.

Em 2021, foram lançadas as duas partes finais da série espanhola que se tornou uma febre mundo afora. Uma das produções mais populares da Netflix entregou um desfecho grandioso, consertando boa parte de suas falhas e fechando a sua trajetória de maneira empolgante, chegando, finalmente, no nível do hype criado em cima dela. Saiu de cena fazendo história.

Na comédia que fez a limpa nos Emmys da categoria neste ano, vencendo sete prêmios, Jason Sudeikis vive Ted Lasso, ex-técnico de futebol americano universitário que assume um time de alto escalão do futebol inglês, tendo de lidar com os desafios de treinar a equipe sem entender absolutamente nada sobre o esporte que se pratica com a bola nos pés.

Mesmo muito elogiada desde o seu lançamento, em 2018, a série da HBO começou a ganhar popularidade a partir de sua segunda temporada, e o terceiro ano, que terminou neste mês de dezembro, levou a atração ao seu auge. A série já venceu nove Emmys e chega forte para a premiação de 2022. A trama explora a vida da família Roy, que apresenta problemas disfuncionais tão grandes quanto a sua fortuna.

Vencedora de quatro prêmios Emmy, a minissérie conta a história de Mare Sheehan, uma detetive de uma pequena cidade que investiga um terrível crime ao mesmo tempo em que precisa lidar com conflitos dramáticos de sua vida. A produção se beneficia, principalmente, pelo magnífico desempenho de sua protagonista, Kate Winslet, e de Evan Peters, que formam uma dupla improvável.

CARLOS REDEL


28 DE DEZEMBRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Viva a Lava-Jato

Vamos deixar bem claro: sou um defensor da Lava-Jato. E, quando falam que Moro queria condenar Lula, pergunto: como não quereria condenar? Como? Moro viu, como todos nós vimos, o que estava ocorrendo nos governos do PT. Viu como havia um esquema de manutenção no poder financiado com dinheiro público, viu como bilhões eram desviados, viu como havia acordos espúrios com grandes empreiteiras. Como não querer condenar o homem que comandava isso tudo?

Há alguns meses assisti ao ótimo documentário sobre Castor de Andrade. Todo mundo sabia que ele, além de ser presidente do Bangu e patrono da Mocidade Independente, era um dos capos do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Sua popularidade era imensa, e sua lista de crimes também.

Quem acabou com a carreira de Castor foi a juíza Denise Frossard, que é entrevistada no documentário. Denise deixa claro, ali, que ela trabalhou pela condenação de Castor. Em certo momento, chegou a comemorar o uso de um artifício jurídico que serviu para incriminar ainda mais o bicheiro.

Denise sabia que estava lidando com um criminoso perigoso e por isso se esforçou para fazer a justiça acontecer.

Casos como o de Castor ou os dos políticos e empresários condenados na Lava-Jato não são iguais a qualquer outra disputa jurídica. Nesses casos, a leniência da legislação brasileira só pode produzir injustiça. Como, aliás, produziu.

Não estou dizendo, com isso, que Moro não errou. Errou, sim, sobretudo quando aceitou o cargo de ministro da Justiça de Bolsonaro. Moro foi vaidoso e ingênuo. Vaidoso porque se deixou seduzir pelos elogios, pelos aplausos e pela bajulação. Passou, assim, a acreditar que fosse maior do que na verdade era. E ingênuo porque acreditou que um carrasco dos políticos poderia se tornar político sem sofrer o revide.

Outro erro (gravíssimo) de Moro foi não perceber quem era Bolsonaro. Como participar de um governo desses sem se comprometer?

Finalmente, Moro errou porque assumiu um lado. É óbvio que ele não fez o que fez por causa de alguma promessa de Bolsonaro, mas o fato de ter se tornado subalterno do inimigo de Lula o maculou de forma irrevogável. Melhor seria se ele tivesse continuado na magistratura e depois lançasse seu nome à Presidência.

Pior ainda: Moro não compreendeu que Bolsonaro tinha tanto interesse em sepultar a Lava-Jato quanto Lula. Tanto que o fez. Foi Bolsonaro quem conseguiu liquidar com a Lava-Jato, e não o PT. Ao contrário, os governos do PT tiveram comportamento democrático diante das investigações.

Mas, no final, os políticos venceram. E todos os crimes que ficaram sobejamente comprovados por centenas de investigadores, promotores e juízes se esfumaçaram como se nada tivesse acontecido. E o Brasil segue sendo o que sempre foi.

DAVID COIMBRA