05 de outubro de 2013 |
N° 17574
CLÁUDIA LAITANO
A virada
Pessoas supersticiosas são
aquelas que não suportam o vazio de sentido. É preciso preencher todos os
espaços, inclusive e principalmente o do acaso, com o véu apaziguador da
circunstância cósmica inescapável. Um raio cai a dois metros de distância de
alguém, e aquele elemento da natureza se transforma imediatamente em algum tipo
de mensageiro de sinais ocultos.
Se o raio acerta em cheio e
pulveriza o azarado, haverá uma alma inocente para dizer que era para ser, que
ninguém escapa da própria sorte e coisa e tal. Em 100% dos casos, porém, um
raio é apenas um raio – e podemos nos dar por muito satisfeitos, enquanto
espécie, por termos aprendido uma ou duas coisas que nos ajudam a evitar que
eles caiam sobre nossas cabeças com mais frequência ainda.
O filósofo-cientista-poeta romano
Lucrécio, que viveu no século 1 AC, foi um dos primeiros pensadores da nossa
era a sacudir o coreto da superstição que corria solta em sua época. No poema
Sobre a Natureza das Coisas, que ecoa ideias de Epicuro e de outros filósofos
gregos, Lucrécio propõe que a humanidade deixe as superstições para trás e
corra de braços abertos para a lógica, a razão e a ciência. Ou seja: em vez de
ficar acreditando que raios são castigo dos céus, tratar de descobrir por que
caem e como dar no pé quando eles se aproximam.
O delicioso A Virada – O
Nascimento do Mundo Moderno, do historiador americano Stephen Greenblatt, conta
as aventuras do caçador de livros que encontrou os manuscritos de Lucrécio em
uma empoeirada prateleira de um mosteiro na Alemanha, em 1417. O historiador
defende a tese de que a descoberta, mais ou menos acidental, foi decisiva para
a história da humanidade.
Ao afirmar que o universo
funciona sem o auxílio de forças sobrenaturais, o livro de Lucrécio, argumenta
Greenblatt, pode ter dado o impulso que faltava para a Europa sair da trevosa e
amedrontada Idade Média, dando início ao processo histórico que desembocaria na
modernidade e na nova ordem social simbolizada pelo 14 de julho.
Uma das ideias de Lucrécio era
exatamente a de que tudo que existe é fruto de uma “virada”, um pequeno desvio
que resulta em algo novo e revolucionário. Para Greenblatt, o livro de Lucrécio
marcou uma dessas “viradas” – definitiva e luminosa.
Em 1988, um livro de capa verde e
amarela veio à luz no Brasil sob a expectativa de uma virada não menos
dramática, ainda que de alcance mais restrito: encerrar o ciclo de
desigualdades, de fato e de direitos, que marcou os primeiros 500 anos de
história do nosso país. As reportagens sobre os 25 anos da Constituição de
1988, porém, dividiram espaço nos jornais desta semana com os resultados das
investigações sobre a morte do pedreiro Amarildo, torturado e morto pela
polícia do Rio como se a chamada “Constituição cidadã” nunca tivesse existido –
ou valesse apenas parte do tempo, para apenas parte das pessoas.
Talvez 25 anos seja um tempo
muito curto para uma “virada” radical e definitiva. Talvez a nossa esteja ali
na esquina, bem perto, quase ao alcance dos olhos. Por enquanto, não deixa de
ser uma circunstância cósmica irônica, se não inescapável, que a morte em nada
excepcional ou revolucionária de Amarildo tenha acontecido justamente num 14 de
julho.
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