
Nós, os sonsos essenciais
Clarice Lispector considerava O Ovo e a Galinha (1964) e Mineirinho (1962) seus dois melhores trabalhos.
O Ovo e a Galinha é Clarice em um de seus momentos mais herméticos ("O que eu não sei do ovo é o que mais importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito"). O leitor avança no conto sem entender muito para onde está indo - seduzido pelo poder encantatório de uma linguagem que nem sempre precisa dizer aonde vai para de fato ir. Mineirinho, em comparação, é um texto quase jornalístico, escrito por encomenda no calor dos acontecimentos: a execução com 13 tiros do bandido Mineirinho, "o inimigo número 1 da polícia carioca" em 1962.
Mineirinho havia ficado famoso pelos crimes sensacionais, pelas fugas espetaculares e pela violência contra suas vítimas. Todos concordavam que ele deveria ser preso, de preferência em um lugar de onde não pudesse fugir tão facilmente. Muitos aceitariam que, em um embate com a polícia, ele acabasse sendo morto. Para Clarice, difícil era justificar por que tantos tiros precisaram ser disparados:
"Há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro".
Em 1962, criminosos ainda não tinham poder suficiente para dominar grandes territórios e submeter a população local a um regime de terror constante. Milícias ainda não haviam cooptado agentes públicos para o crime, disputando com traficantes o direito de martirizar comunidades. Políticos ainda não haviam desenvolvido o traquejo para transformar a violência policial em espetáculo, e o espetáculo em plataforma eleitoral. O que não parece ter mudado muito nesses 63 anos é a dificuldade do Estado para enfrentar o problema sem tratar quem mora de frente para o crime como cidadão de segunda categoria.
Clarice não poderia prever a multiplicação de execuções movidas não apenas pelo desejo de apresentar soluções fáceis para problemas complexos, mas por uma ideia muito distorcida de Justiça. O que ela registra, talvez antes e melhor do que qualquer outro escritor brasileiro, é a perplexidade e as sensações contraditórias de todos nós que dormimos a salvo dos barulhos de bala: "Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso, durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais".
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