
Cada um na sua
A liberdade religiosa foi uma das grandes conquistas do pensamento iluminista do século 18 - e não apenas porque se trata de uma ideia bonita. Nos dois séculos anteriores, a pancadaria entre fiéis comeu solta na Europa. Não havia sossego para ninguém. Precisou morrer muita gente antes que o pessoal entendesse que, para o bem de todos, era preciso criar algumas regras de boa convivência no condomínio da fé.
Basta olhar o noticiário para perceber que essa é uma lição que precisará ser reaprendida até o fim dos tempos. Volta e meia alguém decide apontar o dedo para quem não reza pela mesma cartilha, e lá estamos nós de novo, armando a fogueira para queimar o herege. É o pluralismo garantido por lei que nos protege da tendência que todas as religiões têm de escorregar para a intolerância dogmática - muitas vezes com apoio de correntes políticas que, sem qualquer motivação espiritual, tiram proveito dos ânimos exaltados para dividir e conquistar.
No Texas, onde estou morando, o governador republicano decidiu assinar uma lei obrigando as escolas públicas a colocarem um cartaz com os 10 Mandamentos em todas as salas de aula. Azar do pluralismo. A lei começou a valer no início do atual ano letivo, em setembro, e imediatamente provocou reações.
Uma professora de Dallas colocou junto aos 10 Mandamentos cartazes com princípios fundamentais do budismo, do hinduísmo e do islã. Uma outra começou a distribuir botons em defesa da primeira emenda da Constituição americana - aquela que, inspirada pelos iluministas, garante a liberdade e a pluralidade religiosa. Na semana passada, um juiz federal emitiu uma liminar determinando a remoção dos cartazes, atendendo a uma ação movida por um grupo de famílias descontentes. A ver como a coisa anda.
E o que dizer sobre o que aconteceu em São Paulo na semana que passou? Policiais militares armados, um deles com uma metralhadora, invadiram uma escola depois que um pai, também policial militar, surtou quando viu que a filha, de quatro anos, havia desenhado um orixá durante uma aula. Não precisamos falar sobre o escândalo que é ver a Polícia Militar paulista tocando o terror em crianças e professoras por um motivo absurdo, nem lembrar que a Base Nacional Comum Curricular prevê o ensino de fenômenos religiosos, mitos e práticas culturais em escolas de todo o país.
Vamos abstrair tudo isso e pensar apenas no que esse homem, esse policial, esse pai, anda ouvindo falar sobre religião (a dele e a dos outros) na igreja, em casa ou no zap. Que a lei - dos homens - nos proteja.
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