quinta-feira, 13 de novembro de 2025


 
CARPINEJAR

Minha paixão telefônica

Sou analógico, um animal pré-histórico da oralidade: ainda faço telefonemas. Pratico ligações demoradas. Gosto de conversar à toa, como se o tempo fosse sempre a minha escolha, não uma imposição.

Invento os meus recreios, as minhas pausas, o meu cafezinho, e renovo o meu círculo de afetos querendo descobrir como estão, o que andam pensando, executando, projetando, lendo, assistindo. A banalidade me encanta.

Meus textos saem dessa pescaria de palavras e experiências. Alguém me lembra de uma fase, de um momento, ou registra uma mudança de hábito e desperta em mim o formigamento da escrita.Já fui de uma época em que se media a alegria pela conta telefônica. Se eu estava feliz, falava mais. Se estava triste, falava pouco. Gastava a lábia e a renda do mês no meu processo criativo, na minha terapia cordial.

Com os planos fixos e a consolidação da gratuidade do WhatsApp, sacrifiquei a régua. Não tenho mais o referencial de meus períodos de euforia, próprios do brilho da pérola, ou dos mergulhos melancólicos para dentro do anonimato e da quietude da ostra. Economizei dinheiro e extraviei minha fatura emocional.

Mas posso ver o estado de minhas relações pela quantidade de chamadas perdidas até obter um retorno.

Só minha esposa, meu pai e minha mãe me atendem de primeira. São os únicos. A minha santíssima trindade: mãe, pai e o espírito santo que é a minha esposa. Ela é fluente em todas as minhas línguas e me acompanha em todos os lugares. Devemos nos corresponder, sem exagero, 15 vezes até o anoitecer, em especial quando nos encontramos cada qual em seu trabalho. Acontece uma novidade e já teclo para ela. Acontece uma fofoca e não consigo guardar. Durante a reforma do nosso apartamento - ajustes e orçamentos avaliados a qualquer instante -, nosso contato dobrou de intensidade.

Com os amigos mais próximos, costuma ser uma chamada não atendida de minha parte para que decidam me ligar.Com os amigos inconstantes, a média é de duas chamadas não atendidas para que eu receba uma de volta. Costumam recorrer a desculpas: "Não vi a ligação", "O aparelho estava no silencioso".

Com os conhecidos, são três chamadas não atendidas em dias diferentes para que eu ganhe alguma reciprocidade. Já com os filhos, são cinco chamadas não atendidas e o vácuo eterno. Quem é nativo da geração digital simplesmente não atende o telefone - pergunta o que era por áudio na semana seguinte.

Se procuro por pura saudade, pelo enlevo das cenas vividas lado a lado, para confidenciar uma notícia de última hora ou mesmo por arroubos amorosos, fica até sem graça responder o que era. Não existe um assunto específico, concreto, real, uma motivação para monopolizar a atenção e justificar meus excessivos toques.

O telefone é tudo - funciona como relógio, como máquina fotográfica, como despertador, como laptop, como controle cardíaco e de pressão, como televisão -, menos telefone.

Se você estiver morrendo, dou um conselho: não peça socorro para os filhos adolescentes. É rir para não chorar. 

CARPINEJAR

 

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