terça-feira, 25 de novembro de 2025


25 de Novembro de 2025
CARPINEJAR

As vozes da tornozeleira

O Brasil é uma tornozeleira violada. Prevalece uma curiosidade da destruição, as desculpas não condizem com a realidade, a sensação de alucinação permanece, as versões se transformam de acordo com a esperança da defesa.

O Brasil é uma tornozeleira que fala. Confie nesse fato.

As vozes dentro do grilhão contemporâneo de vigilância são de um país que jamais se curou do regime militar, que viveu como se nada tivesse acontecido, com uma anistia do esquecimento que, da mesma forma que permitiu o retorno dos exilados políticos como Leonel Brizola, perdoou os responsáveis pela tortura e desaparecimentos nos porões do Dops. Nunca houve um tribunal, nunca houve um júri para os sumiços arbitrários e sanguinários da suspensão do Estado de direito.

Eu acredito honestamente que existem vozes na tornozeleira eletrônica. Vozes aprisionadas, vozes jogadas em covas anônimas. Não são efeitos de remédio, mas do veneno amargo da culpa. Quem não foi enterrado sempre voltará pedindo justiça.

O que sinto é que trocamos a tinta das paredes, porém nos faltou coragem para resolver as chagas cíclicas e empreender uma reforma estrutural como merecemos.

A infiltração sonora se espalhou por tudo.

Nossa história é torta desde a descoberta. E não pela dúvida de onde realmente desembarcou pela primeira vez Pedro Álvares Cabral, se foi em Porto Seguro ou Natal, mas pela dizimação dos povos originários. Se havia 5 milhões de indígenas na época da chegada dos colonizadores, no início do século 16, o contingente hoje orbita em torno de 450 mil. Acabaram reduzidos a 0,83% da população brasileira.

E não se trata de ecos de um elo remoto. Basta recordar o Massacre do Paralelo 11, em 1963. De tantos genocídios ocultados, tornou-se um dos raros abordados na imprensa, um marco do gradual extermínio, por parte de seringalistas, de milhares de indígenas cinta-larga que habitavam Rondônia.

Esse alarido de idiomas extintos está também na tornozeleira eletrônica.

Somos a sucessão de chacinas. Jamais fizemos sincera retratação - muito além das cotas - à deportação violenta da comunidade africana para trabalhos forçados na escravidão. Outras 5 milhões de pessoas foram arrancadas de seu lar pela eugenia europeia no período do tráfico transatlântico, que durou mais de 300 anos.

Os gemidos e os cânticos de sofrimento moram na tornozeleira eletrônica. É possível escutar com nitidez. Nem uma solda será capaz de soltar os gritos.

E, por indiferença ao passado, por pura alienação, por absoluta ausência de proteção do governo, por zombaria à saúde pública, por negacionismo diante das nossas feridas abertas, por uma arrogância da ignorância, 700 mil brasileiros morreram de covid-19. Era só correr com a vacina, mas escolhemos placebos como a cloroquina para combater a maior crise sanitária mundial. O que dizer para 1,3 milhão de crianças e adolescentes, de 0 a 17 anos, que perderam um ou ambos os pais durante a pandemia?

Os órfãos entenderiam facilmente os murmúrios que emergem da tornozeleira eletrônica. É a saudade engasgada de seus cuidadores. Veio-me à mente essa ideia da polifonia silenciada, amordaçada, presente num dispositivo de segurança, enquanto eu definia a tinta para pintar meu apartamento. Optei por cetim oriental, um misto de bege com cinza.

Mas não é uma cor poética que mudará a nossa verdade. A impunidade salta aos olhos do mais profundo coração adormecido. _

CARPINEJAR

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