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quinta-feira, 25 de agosto de 2011
25 de agosto de 2011 | N° 16804
ARTIGOS - Rubem Penz*
Último recurso
Per saecula saeculorum, promovemos esforços civilizatórios. Nada contra a natureza – tudo a favor da humanidade. Desde os primeiros dias de vida, busca-se domar o animal e impor o predomínio da razão, o controle sobre os instintos, a polidez.
Do polegar opositor, passando pela possessão do fogo, pela invenção da roda, pelo uso do transistor, até desembocar na capacidade do chip (para citar saltos gigantes), todo o ânimo tecnológico foi acompanhado, necessariamente, pela mediação da ética. Mas a fera segue ali, oculta. Quando tudo é em vão, ela é nosso último recurso.
Das teses para a realidade, a notícia saiu em todos os jornais: médica equipa o muro de sua residência com seringas supostamente infectadas com o vírus HIV. Como pode? – pergunta a sociedade, perplexa. Quem esperaria essa atitude dos que pertencem à elite da civilização, com nível escolar superior, condição social elevada, carreira dedicada à ciência em uma de suas faces mais nobres? O que faria a pessoa com tais qualidades agir com tamanha abominação? Pois ela não age – reage. Ela teme. E nem é ela: é a fera.
Toda vítima, quando encurralada pelo predador, tem duas escolhas: morte, ou morte com luta. Na segunda opção, há um fio de esperança. O combate, mesmo desigual, segue os desígnios da incerteza, podendo reservar um desfecho surpreendente.
Quem sabe disso não é a razão, especialista em avaliações de risco. É o instinto. É a fera. É o desespero, o descontrole. Ninguém pode simplesmente condenar a vítima quando, inferiorizada, revida de modo extremo. À vida, nos agarramos com unhas e dentes – e facas e revólveres e seringas.
Ao falharem os poderes instituídos pela civilização (governo, justiça, polícia), permitindo que vivamos encurralados por grades, acuados e dominados pelo medo, a fera desperta. A incapacidade de socializar uma minoria – covarde, violenta, brutal – nivela todos por baixo. O Sedex em nossa porta pode ser um assaltante; o funcionário da telefônica, da luz, da água, da farmácia, também.
A ordem é: desconfie de quem passa por você na rua, de quem pede as horas, de quem está ao seu lado no banco, de quem conversa com você na internet. Dá-lhe muros e cadeados! Viva na selva: ao menor ruído, corra que é um tigre! Não confie em mais ninguém.
Em pleno século 21 não deveria mais ser assim. Entre os homens, bastaria uma porta fechada indicando o limite, como ocorre quando nos resguardamos dos animais. Aos pares, educação, boas oportunidades, decência, irmandade. Aos poderosos, responsabilidade, limites, compensações (impostos), solidariedade. Aos doentes, tratamento. Aos miseráveis, caridade.
Aos aflitos, consolo. Aos criminosos, sanções. Aos honestos, liberdade. Listando assim, parece até fácil. Como explicar, então, a paranoia de uma cidadã jogada às suas próprias feras, o último recurso? A ponta das agulhas é apenas a parte visível do iceberg.
*Escritor e músico
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