quinta-feira, 4 de agosto de 2011



04 de agosto de 2011 | N° 16782
ARTIGOS - João Maurício Farias*

Miséria não é igual em qualquer canto

Nesta semana, fui entrevistado por ZH sobre a situação de miséria dos indígenas no Rio Grande do Sul. Desde então, não me saía da mente uma parte da letra de uma música dos Titãs: “Miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes”. Pensava nos indígenas guarani, kaingang e charrua e xokleng e que suas misérias não são iguais em qualquer canto.

É necessário trocarmos as lentes de nossos óculos analíticos para tentar compreender os povos originários (como alguns preferem ser identificados, pois consideram “índios” um termo genérico que os destitui de especificidades). Quando vemos os “outros”, o fazemos a partir de nossos valores culturais e princípios epistemológicos (lógicas de pensamento).

Tendemos a não ver nos outros sua “alteridade”, os outros passam a ser apenas uma extensão de nós, uma cegueira antropológica. Para evitá-la, é necessário compreender que existem perspectivas distintas de mundo, cosmologias diferentes; a acumulação de capital e a exploração ao máximo dos recursos naturais para o enriquecimento material individual não estão no centro de suas dinâmicas sociais.

Há aproximadamente 20 mil pessoas dos povos originários que viviam nesta região quando das invasões bárbaras. Por não serem de uma sociedade de produção intensiva com excedentes para abastecer mercados, são vistas pelo senso comum como preguiçosos que não gostam de trabalhar. Apesar de 511 anos de contato, não se aceita que sejam diferentes, com direito à diferença.

Você pode pensar: mas quando este cara vai falar da miséria material ou da riqueza cultural dos povos originários? Certamente há uma enorme carência material nas aldeias indígenas no RS, quase refugiados em suas próprias terras. Mesmo morando nas margens de estradas federais e estaduais, debaixo de lonas e sobras de madeira, enfrentando frio abaixo de zero grau (como aconteceu há 20 dias), essas comunidades indígenas possuem fortes valores culturais.

Há pouco, uma grávida guarani na aldeia-acampamento na faixa de domínio da BR-392 preferiu dar à luz acompanhada da parteira e do xamã karai de seu grupo. Com forte pneumonia, acabou sendo levada para o hospital junto com o bebê. Ela foi salva, mas seu filho não irá passar pelo ritual de nominação, nhemongarai, no início da colheita do milho tradicional.

A grande maioria das mais de 5 mil famílias dos povos originários no Rio Grande do Sul se enquadra no programa federal, e agora também no estadual, de “erradicação da miséria”, pois suas rendas mensais não ultrapassam os R$ 70 por pessoa. Os desmatamentos para a produção da soja, a agropecuária e a industrialização avançaram sobre os territórios indígenas, que tinham e ainda têm nas matas nativas seus principais espaços de existência material e cultural.

Para que acabe essa situação de miséria provocada em grande parte pela desterritorialidade indígena no RS, é fundamental que a sociedade brasileira e gaúcha reconheça esta dívida social imensa que a formação da sociedade nacional provocou.

Para alcançar as “metas do milênio” e reduzir ou eliminar a miséria material extrema, é necessário que o Estado brasileiro (União, Estados e municípios) pague essa dívida histórica e restitua territórios aos povos originários, permitindo que possam ter seus filhos e viver bem dentro dos princípios de suas culturas.

*Cientista social (UFRGS) e vice-coordenador da Regional do Litoral Sul da Funai

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