sábado, 17 de maio de 2008



17 de maio de 2008
N° 15604 - A Cena Médica | Moacyr Scliar


Os usos da dor


Dezenas de anúncios no rádio, na TV, nos jornais convencem-nos diariamente de que a vida sem dor é muito melhor. Coisa que, à exceção dos masoquistas, todo mundo aceita.

Uma dorzinha de cabeça de vez em quando ainda dá para agüentar, mas quando se trata de dor crônica, da dor que acompanha doenças graves, aí realmente estamos diante de uma situação tão grave quanto desesperadora. E a pergunta então ocorre: por que, afinal, existe dor? O que pretende nosso organismo ao nos fazer experimentar a sensação dolorosa?

A resposta talvez esteja em quatro letras, NSAH, a sigla para neuropatia sensorial e autônoma hereditária. Nesta estranha e relativamente rara situação, e da qual existem vários tipos, a criança nasce sem a capacidade para sentir dor ou variações de temperatura (e também, no tipo 4, com diminuída secreção de suor pela pele).

O que acontece, então? Estas crianças estão mais propensas a se machucarem, a se queimarem, a sofrer fraturas até. Podem morder o lábio ou a língua até sangrar e não se darão conta disso. Às vezes, esfregam os olhos com tanta força que ficam com úlceras na córnea - porque a sensação dolorosa não lhes serve de advertência.

Os pais só se aperceberão do problema quando constatam que a criança cai, fere-se - e não chora. Entre parênteses, é preciso dizer que a incapacidade de sentir dor física não inclui o lado emocional, de modo que essas crianças sofrem, sim, e sofrem muito.

Como se trata de uma condição congênita do sistema nervoso, não há tratamento específico, capaz de resolver de vez o problema. Pais e crianças têm de aprender a conviver com a situação. O processo educativo, visando a evitar acidentes e lesões, é aí fundamental.¨

Ou seja: ruim com dor, pior sem ela. Porque a dor existe para nos avisar que alguma coisa está errada no nosso organismo. É um alarme, mas um alarme programado para funcionar automaticamente, sem levar em consideração o fato de que já estamos avisados.

É como o bip do microondas: quando chega ao fim o tempo marcado ele vai soar, e soar de novo, e de novo, até que a gente abre a porta e tira o prato de lá de dentro.

Não adianta bradar: "Chega, já estou avisado". O microondas não dá a mínima para protestos. E o mesmo acontece com a dor. Daí a necessidade dos analgésicos, dos opiáceos, dos anestésicos.

Extremos à parte, deveríamos ser gratos à natureza por podermos sentir dor. No mínimo, a dor é uma mestra. A dor ensina a gemer. Quando gememos, estamos pedindo socorro. E quando pedimos socorro estamos confiando nos outros. A dor nos aproxima. A dor aprimora a nossa humanidade.

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