segunda-feira, 26 de maio de 2008



26 de maio de 2008
N° 15613 - Luis Fernando Verissimo


Missing

Joseph Conrad costumava acompanhar as informações sobre o tráfego marítimo nos jornais. Procurava notícias de barcos que conhecia ou em que tivesse trabalhado nos seus tempos de marinheiro. Encontrar o nome de um barco que tripulara na mocidade devia ser como descobrir o nome de uma antiga namorada numa crônica social, casada com outro.

Mas o mais pungente nos relatos diários de partidas e chegadas, para Conrad, era o aparecimento da ominosa palavra "overdue" - atrasado - junto ao nome de um barco.

Estar "overdue" era estar à beira de um grande alívio ou de uma grande tragédia, pois só uma de duas palavras substituiria o temido adjetivo no noticiário: "arrived", chegado, finalmente, ou "missing", desaparecido.

Havia um tempo predeterminado para um barco "overdue" passar a ser descrito como "missing", e o progresso de uma condição a outra dava à leitura de um simples registro comercial a mesma sensação de um emocionante folhetim diário.

Na falta de notícias de uma chegada ou de uma tragédia comprovada, não havia um tempo predeterminado para o epíteto "missing" ser abandonado.

Ele perdurava ao lado do nome do barco como uma sombra, dia após dia, e o barco permanecia desaparecido, nas palavras de Conrad, "num mistério grande como o mundo". Ou pelo menos como o mar.

Hoje os perigos do mar continuam os mesmos mas qualquer caíque sabe sempre exatamente onde está, e pode transmitir sua localização e sua condição em segundos.

E mesmo quem não enfrenta os mares misteriosos pode dizer o espaço que ocupa na paisagem com precisão. Então, por que esta sensação de estarmos "overdue" em algum indefinível porto seguro do qual partimos e cujo caminho de volta nunca mais reencontramos, perdidos num mistério cada vez maior?

Ao contrário dos nossos barcos, continuamos sendo matéria de especulação literária. Há uma crise não só de velhas certezas ideológicas e morais mas de velhas certezas científicas também, e não passa dia em que não se descubra que o Universo não é nada do que se pensava, ontem.

Não admira que as pessoas cada vez mais renunciem ao racional - que, afinal, nos deu o satélite rastreador mas nos deixou mais desorientados do que antes - e busquem o místico, o tribal e o maluco.

Na falta de instrumentos precisos para mapear a angústia apela-se de novo para entranhas de pássaros, deuses selvagens e a anulação dos sentidos.

No tempo de Joseph Conrad os barcos guiavam-se pelos astros e pela força magnética, que os primeiros elizabetanos que a estudaram a fundo chamavam de alma da Terra.

Mesmo longe de qualquer porto ou socorro, ou de qualquer redenção para a sua culpa, nenhum herói embarcado de Conrad tinha razão para duvidar das estrelas sobre a sua cabeça ou da bússola à sua frente, ou dificuldade em identificar seu lugar no mundo.

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