sexta-feira, 23 de maio de 2008



23 de maio de 2008
N° 15610 - José Pedro Goulart


Dançando com a anarquista

Corria o ano de 1986. O Brasil, sob novos ventos, procurava concertar alguns desacertos com a vizinhança. Entre eles, Cuba. Depois de mais de 15 anos nas sombras da clandestinidade, a relação entre cubanos e brasileiros recebia os eflúvios solares da nova ordem que se anunciava.

Brindemos, pois. Cerca de 30 brasileiros quebraram seus cofrinhos de moedas, alguns fizeram até rifa (posso afirmar) e se bandearam até a ilha famosa para participar do "Festival del Cine", tradicional e importante antro de intelectuais de esquerda.

Iam no grupo o Jorge Furtado e eu, carregando as latas do nosso curta-metragem, O Dia em que Dorival Encarou a Guarda. Havia uma única cópia com legendas, mas estava na Espanha. Na dúvida se chegaria a tempo é que levamos essa outra, sem legendas mesmo.

De modo que fomos parar em Cuba, antes do fax, celular ou internet, dependendo da burocracia de um pais comunista, o que equivale a depender do Gerald Thomas para uma palestra com nexo. "No, y no, y hoy también no". Essas eram as respostas sobre se a cópia havia chegado.

Nunca chegaria. Mas estávamos lá. Tínhamos ido até lá. Algo precisava ser feito: invadimos uma festa com gente como o Gregory Peck, o Sidney Polack e o Gabriel García Márquez.

Também estavam lá os membros do júri do festival e o seu presidente, Jorge Amado. Atencioso, ele nos disse que a reunião do júri havia recém-terminado e os vencedores, escolhidos. Inconformados, invocamos até o espírito do Che. Milagre! Jorge Amado convenceu o júri a reunir-se novamente.

Mas havia outro problema, a maldita cópia sem legendas. A maioria do júri era formada por latino-americanos que não entendiam nada de português. Nossa conquista já estava prestes a se perder, quando alguém (uma fada?) se interpôs ao destino: "Eu traduzo." Nos viramos e vimos que foi a escritora Zélia Gattai, ao lado de Jorge Amado, quem falou.

O Dorival então foi exibido assim, com uma nobríssima tradução ao vivo, e acabou ganhando o primeiro prêmio do festival. Essa história, inclusive, está no livro de memórias de Zélia, A Casa do Rio Vermelho. Lembrei disso agora que a escritora foi para a Bahia de vez.

Volta e meia me imagino de volta a Cuba em 1986. Tivesse essa possibilidade, com a devida licença de Jorge Amado, eu tiraria a dona Zélia Gattai para dançar e, entre encantado e comovido, lhe daria um beijo em agradecimento e diria ao pé do seu ouvido, à maneira de Bogart: "Olha, aconteça o que acontecer, sempre teremos Havana."

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