segunda-feira, 26 de maio de 2008



O JOGO PERVERSO

Não me cansarei de repetir: a questão não é saber quem está mais bem preparado, mas por quê. O sistema de seleção pelo mérito para um número fixo de vagas, como faz o vestibular, produz intencionalmente ilusões.

Baseado num universalismo abstrato, que alimenta o ego dos vencedores e tranqüiliza a consciência social, passa a idéia de que se seleciona o mais inteligente ou o mais esforçado.

Nem sempre. Acima de tudo, o vestibular seleciona quem teve melhores condições de preparação. Ao colocar em competição desiguais, ou seja, candidatos em condições diametralmente opostas de preparação, reproduz a desigualdade historicamente construída.

Não é difícil saber quem, salvo exceções, vencerá. Nesse sentido, é um sistema circular.
Circular e perverso: vence o melhor por ter tido as melhores condições de preparação. O caráter avaliativo desse processo só tem validade quando julga oponentes em condições semelhantes de preparação.

Aí se pode falar em esforço pessoal ou inteligência. Além disso, o vestibular não julga o mérito em si, isto é, a capacidade de cada um de atingir um patamar previamente fixado de desempenho considerado ideal.

Classifica para um número específico de vagas determinado não por razões intelectuais ou pedagógicas, mas por razões econômicas, financeiras, ou seja, a disponibilidade de recursos.

Se houvesse mais recursos, em vez de 40 vagas, poderiam existir 80. A linha de corte seria outra. Em conseqüência, o desempenho exigido seria inevitavelmente outro sem que houvesse protesto ou se denunciasse uma perda terrível de qualidade.

Na verdade, em lugar de aumentar os recursos para dar condições de melhoria intelectual a todos, os governos, em nome da sociedade representada, jogam os jovens uns contra os outros numa competição falaciosa pela qual se cria o mito da escolha dos melhores e, mais do que isso, fabrica-se uma concepção falsa de elite intelectual com base num critério alheio ao desempenho intelectual.

É claro que, ao utilizar esse procedimento, a sociedade sabe quem está selecionando e quem está descartando. A perversidade atinge o máximo quando se atribui a exclusão à falta de esforço dos excluídos.

Faz-se crer que as condições desiguais de preparação pouco contam no processo seletivo e que esse fosso pode ser superado pela simples determinação de cada um. As vagas dos mais desejados cursos universitários ficam com os mais aquinhoados, que se vêem coroados também como mais inteligentes e esforçados.

A maioria excluída, por extensão, é tida por menos esforçada ou inteligente.

Os liberais, defensores de um Estado mínimo, deveriam recusar vagas para os seus filhos em universidades sustentadas pelo Estado. Isso criaria guetos? Certamente. É o que já acontece. Afinal, mais uma vez, por que há uma seleção por vagas?

Por falta de recursos ou por falta de vontade política para alocar mais recursos? Nos dois casos, a perversidade sobressai. Se faltam recursos, o método atual de distribuição da escassez privilegia os privilegiados pelas melhores condições de preparação.

Se falta vontade política para dar novos recursos à educação, então vivemos num mundo cruelmente cínico e enganador.

Refrão: o sistema atual de julgamento pelo mérito reproduz a desigualdade social historicamente construída. Não julga só o mérito, mas, antes de tudo, a construção do mérito.

juremir@correiodopovo.com.br

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