terça-feira, 20 de maio de 2008



VERANICO DE MAIO

A infância é um grande lago. Uma reserva líquida de significados que se revelam aos poucos ou silenciam para sempre, embora nunca se apaguem. Um adulto é apenas uma criança que espichou.

Exceto os adultos que já nasceram grandes por excesso de mau humor ou porque não lhes deram tempo de permanecer pequenos. Outro dia, ouvi, na rua, a expressão 'veranico de maio'.

Um oceano de evocações se abriu em mim como uma pedrinha gerando círculos nas águas de uma lagoa estremecida por risos infantis e enfeitada por uma mata verde salpicada de maracujás. Nem sei a razão disso. Acho que andei tão distraído tentando descobrir o sentido da vida que fiquei sem tempo para sentir a vida.

Aquele 'veranico de maio', desculpem a citação requentada, foi como uma madeleine no chá do personagem de Marcel Proust. Pode não ser original – raramente se é e os melhores sentimentos são, em geral, os que quase todos experimentam alguma vez –, mas eu me senti retrocedendo com o sol morno no rosto em busca de um tempo perdido.

Fiquei, de um golpe, piegas ou até mesmo brega. Tenho dessas coisas. Volta e meia, sem razão profunda, fico sentimental. Comecei a misturar coisas que tinham ou não a ver com veranico de maio:

cheiro de goiaba madura, um passeio a cavalo num final de tarde, cacos de louça azul à sombra de um umbu, o rastro de um avião no céu azul visto de uma coxilha num amanhecer, um grupo de meninos e meninas brincando de roda e cantando 'se essa rua fosse minha', as frutas entortando os galhos de uma generosa bergamoteira,

a professora chamando os alunos para o começo da aula, o apito do trem numa curva da estrada de ferro, uma menina de tranças e vestidinho de chita lendo a 'Cartilha do Guri' deitada sobre um pelego, ovelhas pastando num campo verde e raso a perder de vista. Fui andando e me lembrando de mim.

Quanto mais eu me lembrava, mais eu me esquecia. Apareceram tantas coisas esquisitas, nomes que haviam desaparecido completamente, rostos, sorrisos, brigas e, pasmem, gritem, denunciem mais um clichê, cadeiras na calçada.

Fiquei uns dias ensimesmado, sorumbático, enterrado em velhas páginas de Cyro Martins, Simões Lopes Neto e Darci Azambuja. Sentia-me como um guerreiro fatigado. Fiz-me várias vezes a clássica e óbvia pergunta: o que estou fazendo aqui? A voz repicava na minha cabeça, 'veranico de maio', silêncio, 'veranico de maio'...

Sei que já escrevi isso antes, embora não me lembre quando. É um sonho recorrente, uma obsessão que passa por um livro de Norberto Iorio, um albatroz marrom, e termina em ruas desconhecidas de Montevidéu ou, quem sabe, de uma cidade da Patagônia argentina.

A melancolia, enfim, passou. Ficou um rastro de cheiros e andei dois dias deslumbrando com as cores das frutas do mercadinho que fica próximo da minha casa. Aí, na televisão, vi uma reportagem sobre trabalho infantil para fumageiras.

O repórter perguntava a uma criança mergulhada no seu trabalho de selecionar folhas de tabaco: 'Que está fazendo?'. A resposta tinha algo de brincadeira, de jogo: 'Uma boneca'. Era uma brincadeira sim, de mau gosto.

Que lembranças terão um dia de um veranico de maio aqueles meninos sem roda nem cantiga de rua?

Lembrarão certamente que 'boneca' é o nome dado ao produto daquele trabalho atroz que transforma crianças em adultos que não precisaram espichar e dificilmente conseguirão crescer.

juremir@correiodopovo.com.br

Mesmo com previsão de chuva para esta terça-feira que tenhamos todos um ótimo dia.

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