sábado, 31 de maio de 2008



31 de maio de 2008
N° 15618 - Cláudia Laitano


Os não-talentos

A maior vantagem da infância em relação a todas as outras etapas da vida não é a cor das bochechas (ou mesmo a existência delas) mas a nossa alegre ignorância a respeito de quase tudo - inclusive, e principalmente, sobre nós mesmos.

A gente não sabe que algumas coisas exigem talento, disciplina, habilidade - e muito menos se saímos ou não da fábrica equipados com essas características.

Por isso, dentro de seus limites, as crianças fazem rigorosamente tudo que têm vontade: desenham, inventam histórias, jogam futebol, dançam, contam piadas, sem que o fato de serem talentosos ou não na atividade escolhida entre muito em consideração.

Esse paraíso de infinitas possibilidades, evidentemente, dura muito pouco. Tirando, talvez, o Leonardo da Vinci, a maioria de nós usa na vida adulta apenas meia dúzia das cartas que recebeu do destino - e meia dúzia já dá um trabalho imenso.

Com a maioria dessas possibilidades descartadas ao longo do tempo a gente se conforma ("eu nem queria mesmo..."), mas sempre fica uma pedrinha no sapato.

Todo mundo tem a lembrança de pelo menos uma situação em que tomou consciência da absoluta falta de talento para alguma coisa que gostaria muito de fazer - se não bem, pelo menos mais ou menos. Os fracassos da infância e da adolescência doem mais, e para sempre, porque são os primeiros e invariavelmente nos pegam de surpresa.

O menino que descobre que é perna-de-pau no futebol, às vezes antes mesmo de aprender a amarrar os sapatos sozinho, tem que inventar rapidamente outra estratégia para fazer amigos e influenciar pessoas.

E é porque somos rápidos e criativos nas estratégias para superar nossos não-talentos que toda a civilização existe - o primeiro homem das cavernas que saiu para caçar, suponho, não deve ter sido aquele cercado de formosas donzelas dispostas a catar coquinhos e maçãs para o seu jantar.

Seguindo esse raciocínio, o fato de eu nunca ter aprendido a jogar vôlei deve ser o verdadeiro responsável por vários dos talentos que eu desenvolvi ao longo da vida. Porque esse foi meu fracasso original e fundador.

Durante muito tempo, aprendi a me convencer de que "eu nem queria mesmo" e que qualquer canguru bem treinado é capaz de jogar uma bola de um lado para o outro de uma rede.

Mas todo meu esforço de auto-engano sucumbia na primeira ocasião em que um grupo de amigos se reunia na praia e algum inoportuno sacava a idéia mortal: "Que tal um voleizinho depois do almoço?".

Esta semana, depois de anos, voltei a ser confrontada com uma quadra, uma bola e todo um porão lotado de memórias infelizes ligadas ao vôlei.

Durante alguns minutos, pude decidir entre entrar em campo, só de brincadeira para ver o que acontecia, ou fazer o que sempre fiz - isto é, fugir do jogo antes de começar.

Entre o eu conhecido e desajeitado e o eu bem-disposto e corajoso, fiquei com a arquibancada. Mas a grande descoberta foi que o vôlei já não dói tanto quanto doía antes. Como um amor descabelado da adolescência, é quase cômico lembrar que sofri tanto, e durante tanto tempo, por ele.

A maior vantagem da maturidade em relação a todas as outras etapas da vida é que a gente já não é mais criança.

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