terça-feira, 20 de maio de 2008



20 de maio de 2008
N° 15607 - Cláudio Moreno


Convivendo com as marés

Nunca houve artistas mais obstinados que os ceramistas da Grécia antiga. Trabalhando com o barro elementar, tirado das margens dos rios - a mesma matéria-prima da simples telha ou do tijolo - , fabricavam ânforas, taças, vasos, cálices, jarros e todos os demais utensílios necessários para a vida doméstica. Muitos deles, no entanto, não se limitaram a produzir meros artefatos utilitários;

apesar de não desenharem no plano, mas na superfície esférica ou cilíndrica dos recipientes, artistas como Exekias ou o pintor de Amásis demonstram um talento excepcional, criando obras de grande beleza que impressionam ainda hoje pela notável composição das cenas, pela riqueza dos detalhes e pelo movimento das figuras retratadas.

Era uma operação delicada. Da argila crua ao vaso pronto, muitos eram os acidentes possíveis, principalmente quando o fogo entrava em cena. O perigo morava no forno, onde o mínimo detalhe podia pôr tudo a perder.

O cozimento era complexo, feito em três etapas, cada uma em temperatura diferente, medida numa época que não conhecia termômetros ou termostatos. Um erro de cálculo, e o fogo, fera domada mas sempre selvagem, fazia o vaso estalar em pedaços, escurecia a pintura, gretava todo o verniz ou alterava as cores pretendidas.

Mesmo quando tudo corria bem e a peça saía perfeita do forno, sua sorte jamais deixaria de ser precária, pois a fragilidade intrínseca da cerâmica determina seu destino inevitável: um dia ela vai quebrar.

Ninguém melhor que esses artistas para nos fazer compreender a sabedoria contida na parábola dos castelos de areia. Uma praia, na maré baixa, oferece todo o espaço e toda a areia do mundo para criar.

São três as atitudes possíveis: uns, entusiasmados com o seu projeto de castelo, mobilizam toda sua força criativa e só pensam na beleza do que irão construir; como não lembram que a maré vai voltar, ficam surpresos e adoecem quando ela vem derrubar o que fizeram.

Outros, ao contrário, tolhidos pela idéia assustadora de que a maré acabará por vir, desistem antes de começar, preferindo deixar-se levar pelo oceano da existência, sem tentar erguer castelo algum.

A terceira atitude, a mais difícil de manter, mas muito mais rica que as outras, é semelhante à de nossos mestres ceramistas, que, sem abrir mão de suas ilusões e de seus projetos, sabiam se submeter às limitações inexoráveis da condição humana.

Aceitavam como fatos naturais os caprichos do fogo e o caráter transitório das frágeis obras que produziam, mas nem por isso deixavam de se esmerar até o último traço do pincel. Afinal, se tudo desse errado, estavam prontos para recomeçar no outro dia.

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