segunda-feira, 19 de maio de 2008



A MORTE DA VELHA SENHORA

Zélia Gattai morreu. Estava com 91 anos. Num caso desses, pode-se aplicar com pertinência o título de García Márquez: crônica de uma morte anunciada. Também é possível recorrer aos clichês mais verdadeiros: que fazer?

É o ciclo da vida. Mais conhecida como mulher de Jorge Amado, Zélia foi uma escritora tardia capaz de contar uma boa história sem arroubos nem frescuras. Esse é o ponto. Tivemos no Brasil grandes contadores de histórias.

Jorge Amado foi certamente o maior deles no século XX. Ele e Zélia pertenciam a uma época revoluta feita de comunistas, cultos afro-brasileiros, escritores engajados, viagens de navio, passagens pela União Soviética, grandes poetas, idealistas e contadores de histórias.

Zélia nasceu numa família de anarquistas italianos. Resumido assim, até parece sinopse de ficção. Cada tempo com suas mitologias. Não sejamos nostálgicos.

Sim, sejamos um pouco, ao menos, nostálgicos. É sempre agradável sentir certa nostalgia daquilo que não vivemos. Muitas vezes, as nossas maiores perdas atingem justamente aquilo que nunca tivemos.

Eu gostaria de ter conhecido pessoalmente Zélia e Jorge. Tenho todos os livros dele a 2 metros de mim. Adoro a sua capacidade de inventar personagens, de modelar o barro da literatura e até a sua verborragia espalhada em milhares de páginas.

Tudo vibra nas histórias de Jorge Amado, inclusive o que nos parece falso ou excessivo. Foi Zélia quem morreu, pode estar pensando um leitor. Sim, claro, mas Zélia e Jorge foram realmente quase um só. Ela revisava os livros dele. Ele não dispensava a opinião dela.

Um pouco mais e vou me permitir um lugar-comum ainda maior: enfim, Zélia foi ao encontro de Jorge. Não posso, obviamente, dizer que já era tempo. Talvez, no entanto, ela tenha pensado assim na hora de partir. Vão pôr as histórias em dia.

Um certo tipo de modernismo inventou que 'apenas' contar histórias não fazia um grande escritor. Para atingir o ápice da literatura, conforme os arautos do sublime mais sublime que o sublime, seria preciso inventar uma nova linguagem ou, de preferência, implodir a linguagem.

É muito provável que alguns autores tenham atingido plenamente esse objetivo, mas disso não temos certeza por termos conseguido compreender os seus livros estilhaçados.

O tempo vem provando, com a sua proverbial e eterna paciência, que as modas passam rapidamente e as boas histórias ficam, ainda mais quando encontraram grandes contadores para lhes dar forma.

Volta e meia, alguém anuncia a morte do romance. Tenho visto somente morrer romancistas. Mesmo assim, continuamos a falar de alguns como se tivessem acabado de publicar seus livros.

Confesso minha pieguice (não é novidade): a morte de Zélia Gattai me fez pensar em três mistérios: da vida, do amor e da arte.

Ninguém morre de bom grado. Creio que nem os suicidas. A vida é uma grande história que ninguém quer largar pela metade. Lamenta-se chegar ao fim. O fim nunca está perfeito. Sempre se quer retocar alguma coisa, aumentar algumas linhas.

Já o amor só pode ser uma criação artística. Imagino que Zélia e Jorge tenham tido crises e aborrecimentos. Tudo foi superado.

A arte é pura perplexidade, uma forma que a humanidade inventou para se olhar no espelho embevecida ou assustada. Como será que um comunista e uma anarquista se encontram no céu? Será que se abraçam longamente e dizem em coro: graças a Deus?

juremir@correiodopovo.com.br

Ótima segunda-feira e uma excelente semana para todos nós.

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