quarta-feira, 21 de maio de 2008



21 de maio de 2008
N° 15608 - David Coimbra


As 10 linhas da Martha

Blaise Pascal, que muitas coisas disse, entre elas que o coração tem razões que a própria razão desconhece e que o amor é cego e a amizade fecha os olhos, tudo isso dizia Pascal, e mais: dizia também que nós, seres humanos, temos todos um vazio interior, e o preenchimento desse vazio interior termina se tornando a principal razão da nossa vida.

E não é mesmo? Uns preenchem o vazio interior com o trabalho. Conheci um sujeito que costumava gabar-se:

- Para mim, em primeiro lugar vem a Organização. Em segundo, meu filho.

A Organização era o lugar onde trabalhávamos. Um dia, o cara ganhou um aumento. Ao receber o contracheque, escandalizou-se, deu um soco na mesa e marchou até a sala do patrão. Pediu que lhe diminuíssem o salário.

- No quiero prejudicar la Organización - justificou.

Era meio castelhano.

Outra vez, esse mesmo patrão, um grande gozador, deixou correr pela Organização o boato de que iria demiti-lo. Mentira, claro - só para ver como ele reagia.

Pois o cara irrompeu na sala do patrão, espalhando secretária para tudo que é lado, ajoelhou-se em frente à mesa do homem e uivou, mãos postas:

- No! Nooooooo! No quiero derrar la Organización!

Há também quem dedique sua existência a essa invenção da literatura, o amor romântico. Alguém dirá que isso é coisa de mulherzinha. Sendo assim, como se explicam as músicas ouvidas pelos caminhoneiros? Todas as músicas ouvidas pelos caminhoneiros são de homens se lamuriando pelo amor perdido.

Aaaaah, jeito triste de teeeer voooocê

Longe dos olhos e dentro do meu coraçã-ã-ão Me ensina a te esqueceeeeer Ou venha logo e me tire desta solidããããõ!

E os caminhoneiros não são exatamente pessoinhas delicadas. É que, na falta do sucesso profissional, na falta da fama e da glória, na falta da riqueza e da fortuna, na falta do apreço pelo conhecimento, o amor os preenche.

Outros há que se realizam com, quem diria?, o futebol. Não com a prática do dito cujo, mas com a paixão por algum clube. Nas entrevistas que o Lucianinho faz com os torcedores, na Gaúcha, seguidamente ouço algum proclamar:

- O (Grêmio ou Inter, escolha) é tudo na minha vida! Tudo! Tudo!!!

É estranho, bem sei, mas torcedores que tais cometeriam loucuras pela sua paixão. Lamberiam a careca suada do Guiñazu, sentariam nos joelhos do Pereirão, fariam qualquer coisa, se acreditassem que isso beneficiaria seu clube. Normal: o clube transformou-se no centro da personalidade deles.

É assim que ocorrem incidentes como o que abalroou a Martha Medeiros, dias atrás. Depois de o Inter ganhar o Gauchão, a Martha ousou redigir um texto de 10 linhas contando que é colorada, mas não fundamentalista, e que se alegrou com a conquista do time de Vittorio Piffero e bibibi. Para quê!

Gremistas fulos enviaram imeils classificando a Martha e toda a descendência dela com todos os adjetivos usualmente empregados pela Geral do Grêmio nas arquibancadas de pedra do Olímpico.

A Martha ficou tão chocada que escreveu uma coluna a respeito, queixando-se da grosseria dos torcedores.

É que a Martha não sabia, obviamente, é que esses torcedores não preenchem seu vazio interior com amigos, com a família, com seus amores, com seu trabalho, com seus livros, com os filmes que vêem e as boas comidas que comem, com as viagens que fazem e as músicas que ouvem, com tudo isso junto e equilibrado. Não.

Para esses torcedores, o clube de futebol é a sua identidade. Natural que não considerem o rival um adversário, mas um inimigo. Afinal, o rival não ameaça apenas o clube pelo qual torcem.

Ameaça a eles próprios. Talvez seja rasteiro, talvez seja doentio, mas é assim que é.

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