quarta-feira, 7 de maio de 2008



07 de maio de 2008 | N° 15594
David Coimbra


A bola na avenida

Conduzia meu veículo automotor pela Padre Cacique, nas imediações do Beira-Rio, quando uma bola branca voou por cima de um muro de colégio. Ouvi o vozerio das crianças angustiadas pela interrupção da brincadeira. Correram, dependuraram-se na tela estendida na parte superior do muro, gritaram:

- A bola! A bola!

Por sorte, a bola havia pingado perto de um ponto de ônibus, e no ponto de ônibus estava parada uma senhora de idade provecta, ela e seu guarda-chuva.

- A bola, vó! - pediram as crianças. - A bola!

Vinha em marcha reduzida, já que lá adiante a sinaleira encontrava-se fechada. Parei a poucos metros do ponto de ônibus. Fiquei observando a cena.

- Vó, vó! A bola! - esganiçava-se a gurizada.

A velha não parecia ouvi-los. Continuava imóvel, nem olhar para a bola olhava.

As crianças urravam em uníssono, a bola, a bola, a bola! A velha nem aí. Era impossível que não estivesse ouvindo, com todo aquele barulho. Só que ela não se dignava sequer a virar-se para a bola ou para trás, para as crianças no muro do colégio.

A bola estava muito próxima. Bastava a mulher avançar dois ou três passos, descer o cordão da calçada, abaixar-se e colhê-la, feito uma petúnia do asfalto. Mas ela não fazia menção de que iria se mover. Ao contrário, levava uma expressão enfarruscada no rosto, parecia de mal com o mundo. Não vai pegar a bola, pensei. A essa altura, as crianças imploravam:

- Por favor, vó! A bola! Por favor!

Senti o peito se comprimir. Por que ela não lhes devolvia a bola? O que é que custava? Será que eu devia saltar do carro, correr até a bola e chutá-la muro acima? Mas o carro não estava tão perto assim, o sinal poderia abrir, aquela rua é cheia de azuizinhos. Não podia abandonar o carro, daria a maior confusão.

- A bola! - suplicavam as crianças. - A bola, vó!

As velhas têm problemas com bolas e crianças, já vi. Contei dia desses daquela que fatiava as bolas que caíam no quintal dela, não contei? Pois é. Uma bruxa. Aquela velha ali, na parada de ônibus, provavelmente era do tipo que cortava bolas de futebol desgarradas. Na certa, em vez de atirar a bola de volta às crianças, a jogaria para o outro lado da rua, debaixo dos pneus de algum ônibus. Maldita!

Esse é um dos grandes dramas da infância. Bolas são instrumentos que volta e meia fogem ao controle de quem lida com eles, rolam para longe, para lugares inóspitos, como quintais de velhas amargas e pistas de avenidas movimentadas.

Uma tarde, quando jogávamos pelada na Rua da Tendinha, nos fundos da Gráfica Pallotti, o Raimundão deu o popular "bago" e a bola foi parar no terreno da empresa. Ninguém queria buscá-la - havia uma lenda de que o terreno da gráfica era guarnecido por cães ferozes. Alguém aventou de obrigar o Raimundão a pegá-la.

Afinal, a lei universal da peladinha é: quem chuta, busca. Mas o Raimundão negava-se a ir, dizia ter medo pânico de cachorro, não ia de jeito nenhum. Além disso, é preciso ressaltar que o Raimundão media metro e noventa de altura e era brabo feito um boi. Acabamos convencidos pelos argumentos racionais do Raimundão. Alguém deveria se sacrificar em seu lugar.

Percebi que, se dependesse dos meus amigos, o jogo não continuaria. Como estava numa boa fase, fazendo gols e tudo mais, ofereci-me em holocausto. Tudo por uma atuação consagradora.

Existia um rombo na tela de arame que protegia o terreno. Entrei por ali. Dezenas de árvores e arbustos enchiam o lugar de sombras. Não conseguia ver onde a bola caíra. Do outro lado da tela, meus amigos ajudavam:

- Mais pra esquerda! Debaixo daquela árvore grande!

Fui me esgueirando para lá, olhando para os lados, tentando adivinhar algum movimento, procurando os cachorros. Caminhava meio agachado, passo a passo. Passo a passo. Vi a bola (David viu a bola). Sorri. Apressei-me. Cheguei ao local onde a bola repousava. Recolhi-a. Coloquei-a sob o braço e... de repente...

COM MIL WOLFREMBAERS, os cachorros!!!

Três deles. Ou seriam quatro? Podiam ser até cinco. Na verdade, era uma matilha. Jesus Cristo, saí no que se chama desabalada corrida. Os cães atrás de mim, rosnando e latindo, eu correndo e correndo e correndo, os guris gritando:

- Corre! Corre!

Naquele momento, eu realmente não precisava dos conselhos deles. Corri, corri, já estava vendo o buraco na tela por onde pularia para a salvação. Corri, corri, corricorricorricorri muito, saltei para o buraco e, no instante em que estava no ar, ouvi um NHAC! e senti uma fisgada na panturrilha.

Na ruazinha, os guris me cercaram, excitados. Olhei para trás e vi, por Deus que vi: um cachorro de pêlo branco-sujo, grande, tendo entre os dentes um naco de carne do tamanho de um ovo de galinha, a gordura branca projetando-se para fora do focinho. Oh, pedaço de mim!, como diria o Chico Buarque.

É por essas que um guri passa, atrás de uma bola. Por isso, decidi que sairia do carro e devolveria a bola para os guris do colégio da Padre Cacique. Puxei o freio de mão, levei a mão ao trinco, ia saindo, e então alguém mais chegou. Um homem de uns 30 anos, de jeans e camiseta branca. Caminhava sem pressa e ouviu o pedido da criançada:

- A bola, tio! A bola!

Fiquei aliviado. Um homem seria solidário, nessas questões futebolísticas. Ele devolveria a bola! O sinal abriu. Havia uma fila grande de carros a minha frente, teria tempo de testemunhar a devolução. De fato, ele apanhou a bola da rua. Mas não a devolveu. Ficou olhando-a, sopesando-a, examinando-a.

- Tio! Tio! - gritavam as crianças. - Tio!!!

Ele olhou para elas, olhou para a bola e para a bola ficou olhando, sentindo-a com a mão. Arregalei os olhos ao compreender o que aconteceria. Ele queria ficar com a bola! Queria roubá-la!!! Os carros andavam. A pista vazia se alargava diante de mim. Os carros detrás buzinavam. Eu tinha de ir! Arranquei. Mas, antes de sair, consegui abrir a janela e gritar:

- A bola, pô! A bola!!!

O homem olhou para mim. Olhou para as crianças. Olhou para a bola.

E mandou-a para o outro lado do muro.

Um ponto a favor da Humanidade!

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