quinta-feira, 13 de setembro de 2007

E se?



Luis Fernando Verissimo
13/09/2007


E se?

Não sei se é verdade, mas dizem que Adolf Hitler quase foi se tratar com Sigmund Freud. Seus pais teriam sido aconselhados a levá-lo para uma consulta com o doutor.

Presumivelmente decidiram que o que ele fazia com insetos era normal para a idade e que sua compulsão de dominar o bairro passaria. Os Hitler não procuraram o doutor e o resultado foi o que se viu.

O quase encontro toca na questão da importância do sujeito na História. Até que ponto decisões pessoais, personalidades e neuroses determinam o que acontece, ou líderes, heróis, hereges e tiranos são apenas instrumentos de uma lógica impessoal?

A História teria sido diferente sem Hitler, ou se Hitler tivesse se tratado com Freud - ou sido um sucesso como pintor?

O nazismo como uma anomalia patológica, coisa de loucos, é uma ficção conveniente que absolve boa parte do pensamento cristão europeu de direita da sua cumplicidade ou é a idéia correta? A conclusão de que nossas vidas dependem da sanidade alheia horroriza, mas a idéia de um determinismo neutro, independente de qualquer escolha moral, também é assustadora.

Precisamos de vilões mais do que de heróis, de culpados muito mais do que de inocentes. Nem que seja para preservar o auto-respeito da espécie.

Karl Kraus escreveu que a Viena do começo do século era o campo de provas da destruição do mundo. A derrocada do império austro-húngaro foi o fim de um certo mundo, mas acho que Kraus quis dizer mais do que isto.

Para ele, as revoluções do pensamento postas em movimento na Viena da sua época trariam o fim do longo dia do humanismo europeu que durara desde a Renascença, e o século que começava restauraria a idade das trevas.

O encontro que não houve entre o intelectual judeu que radicalizou o estudo da consciência e o homem que quis eliminar as duas coisas, o judeu e a consciência, da História simboliza esse prenúncio, ou essa intuição de Kraus, sobre o século. Seria fatalmente o século dos desencontros.

Principalmente o de duas formas de modernidade, a que liberava o pensamento pela ciência e a que o aprisionava pelo mito do Estado científico.

O materialismo histórico rejeita a idéia de sujeitos regendo a História e a noção de que as idéias justas vêm de um discernimento moral inato, ou religioso.

Os liberais nos dizem que o mercado não é moral nem imoral, é apenas inevitável. Assim, o relato de heróis providenciais contra bandidos doentes sobra para a literatura, ou para essa categoria de narrativa sentimental que é a História convencional.

Porque gostamos de pensar que é a iniciativa humana que move a História e que seu objetivo é moral e justo. Ou que ela pelo menos tem uma cara e uma biografia.

A História feita por indivíduos tem o atrativo adicional da conjetura criativa, de infindáveis variações sobre o "se".

O que teria acontecido se Napoleão tivesse se contentado em ser instrutor de tiro, se os pais do Stalin nunca tivessem se encontrado? E se Jânio Quadros tivesse ficado?

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