sábado, 22 de setembro de 2007

Gente da noite



22 de setembro de 2007
N° 15374 - Ricardo Silvestrin


Gente da noite

Na Vila Madalena, em São Paulo, o melhor boteco a que fui era de um carioca. Aliás, boteco deve ser mesmo invenção dos cariocas. Poderiam até criar uma consultoria, um best-seller, As 10 Leis do Boteco.

Primeira lei: um boteco tem que ter um dono sinceramente com cara de dono de boteco. Não adianta comprar uma casa na Padre Chagas, botar um bonitão com roupas caras, puxando cadeira para os clientes sentarem. Nada disso. Segunda lei: o ambiente tem que ser sinceramente decorado pelo dono.

Ou seja, é impossível para um arquiteto fazer um projeto de boteco. Vai soar falso. Terceira lei: a comida tem que ser sinceramente caseira. Feita por quem cozinha em casa no dia-a-dia, não por quem aprendeu num curso com o chef do momento.

Quarta lei: a música tem que ser o bom samba brasileiro, cantada por quem tem a manha sincera. Não adianta imitar o estilo samba de cantar. Ou se tem a manha ou não se tem. E paro por aqui, na quarta mesmo, até porque se soubesse todas as 10 leis seria carioca.

Mas essa introdução foi para falar do Bar do Nito. Fica ali na descida da Lucas de Oliveira. É uma casa de esquina. Tem tudo isso de que eu falei. O dono do bar, o Nito, é um músico. Ao seu lado, um violonista que conhece cada milímetro do instrumento. Acompanha, sola, bordoneia, para usar um termo totalmente adequado ao violão do sambista.

E o Nito canta uma excelente seleção com o melhor do nosso samba. Com uma fisionomia que me lembra a imagem que tenho de Túlio Piva, ele vai passando por Vinícius, Tom Jobim, Chico, Lupicínio e por aí vai. É o bar que certamente o Lupi freqüentaria se estivesse vivo.

E, é claro, seria chamado para dar uma canja. Até eu fui chamado, com muita honra, pelo Nito para cantar numa noite em que estive por lá. Ele me anunciou dizendo "ele canta rock, mas agora vai cantar um samba". Lasquei um Kid Cavaquinho do João Bosco e Aldir Blanc, acompanhado luxuosamente pelos dois violões.

O lugar conserva uma alma boêmia de Porto Alegre que se via nos botecos da Riachuelo, sobrevive no Gambrinos, ali no Mercado Público, no Copacabana na Venâncio Aires. O curioso do público que freqüenta o Nito é a diversidade. Tem uma democracia que só se encontra em boteco.

E o legal é que uma grande fatia é gente entre 25 e 30 anos. Isso mostra que há um espírito de boteco que atravessa as gerações, vai além da questão geográfica e mesmo de classe social.

É um pouco do nosso fundo brasileiro, mais pobre do que rico, branco, negro e mulato, gingado, com apurado ouvido musical. Sim, existem também os comportamentos regionais.

Outro dia, no trânsito, tendo a frente cortada por um motorista ostensivamente imprudente, me saiu um gaudério do fundo da alma e gritei para mim mesmo:

mas é um animal, tchê! Já os paulistas fazem do boteco um grande negócio. Trabalhar e ganhar muito dinheiro é coisa que só paulista sabe fazer. Mas o boteco nos une como brasileiros.

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