terça-feira, 25 de setembro de 2007



25 de setembro de 2007
N° 15377 - Paulo Sant'ana


Transporte de gado

Mal chego do Alegrete, onde me tributam toneladas de carinho, encontro importante missiva a me aguardar. Publico-a, entre outros motivos, em respeito e gratidão àquela população alegretense, tão cheia de cuidados e atenções conosco quando a visitamos. Ei-la:

"Caro SantAna. Lendo tuas colunas, como diariamente o faço, não pude deixar de escrever-te pela primeira vez. Sou promotora de Justiça na cidade de Alegrete, mencionada na tua coluna de hoje e onde estarás nos próximos dias.

Sou, como tu, fã incondicional desta bela cidade da fronteira, que tem um dos povos mais hospitaleiros e solidários deste nosso Estado e, há poucos anos, fui agraciada com a honra de receber o título de cidadã alegretense.

Acredito que tudo isso me credencie para fazer uma crítica à situação que hoje está vivenciando parte da população desta honrada cidade. Ocorre que, ao ler tuas últimas colunas acerca do sistema de tratamento fora de domicílio adotado pelos municípios do Interior, não pude deixar de te reportar a triste situação de Alegrete.

Apenas para que entendas, minha promotoria, das quatro existentes nesta cidade, é aquela que trata das questões de saúde, e tenho dito para aqueles mais próximos que é a promotoria do SUS.

Justamente por isso, SantAna, vejo diariamente o anseio das pessoas que, após literalmente serem ignoradas pelos serviços públicos que deveriam atendê-las, batem de forma desesperada nas portas da Promotoria de Justiça, buscando um último recurso na obtenção de um direito constitucional seu de ter direito a saúde e dignidade.

Dignidade, caro jornalista, pois, ao negar ou protelar indefinidamente medicamentos, atendimento médico, próteses, órteses e até mesmo transporte, está se negando muito mais que saúde ao ser humano, está se negando dignidade. Atualmente, situação das mais sérias ocorre aqui neste município, que tanto lhe apraz e também a mim.

Sim, porque se já não fosse sério o sistema de ambulancioterapia, como tu tão bem nominas, pior ele se transforma quando se verifica a forma como as pessoas têm sido transportadas para atendimento.

A partir de reiteradas denúncias, foi instaurado inquérito civil para apurar irregularidades no transporte fora de domicílio nesta cidade. Descobriu-se, então, sr. jornalista, que as pessoas têm sido transportadas dentro das ambulâncias, perdoe-me o termo, como gado em caçamba de caminhão, em número de oito, nove, sentadas em bancos, dividindo macas e até mesmo sentadas no chão das ambulâncias.

Não há cinto de segurança, não há minimamente local adequado para sentar, principalmente pessoas doentes, e por 500 quilômetros, e mesmo assim é dito às pessoas que estão indo de carona na ambulância e que não devem reclamar.

Recentemente, no curso das investigações, foi ouvido na Promotoria de Justiça um senhor idoso, com doença que o incapacita de deslocar-se normalmente (tanto o é, que anda de muletas) e perguntado a esse se era verdade que havia ido sentado em um banco de ambulância por 500 quilômetros até Porto Alegre.

Confirmado isso, SantAna, pasme, quando esse senhor me relata que, em que pese não ter idéia do local onde seria sua consulta, por não saber andar em Porto Alegre, foi deixado, em um dia chuvoso, na rodoviária daquela cidade, à própria sorte, sem que sequer soubesse se tinha como deslocar-se até o local da sua consulta.

Como deixar pessoa idosa, que desconhece Porto Alegre, doente, de muletas, em uma rodoviária, sem qualquer preocupação com o que pode lhe acontecer?

Como falar em dignidade da pessoa humana com um tratamento desses? O pior, entretanto, é que, perguntado acerca do porquê de não ter denunciado tal absurdo, respondeu que não podia fazê-lo, pois estavam lhe fazendo um favor, lhe dando uma carona. Isso, realmente, é o que mais gera indignação.

O fato de que as pessoas acham que é um favor serem atendidas pelo SUS, serem transportadas por seus municípios, quando isso é um direito seu, direito de que não podem e não devem abrir mão! Outros absurdos como esse têm ocorrido todos os dias aqui em Alegrete, caro jornalista, e precisaria de dias para te contar todos.

Consultado por mim acerca do fato, mediante indignado contato telefônico, o sr. secretário de Saúde local alega não ter conhecimento desses fatos (também, depois disso, nada tendo feito para mudá-los), talvez porque também faça muitas viagens e pouco atenda a população que representa, mas certamente o faz muito bem acomodado em carros da prefeitura com motorista...

É, sr. jornalista, e tenho a certeza de que não se sente grato a essa mesma população que paga essa conta...

Perdoe-me por este desabafo indignado, mas é muito triste ver todos os dias a degradação da pessoa humana e as humilhações pelas quais passa para buscar seus direitos, situação que, felizmente, cumpre ao Ministério Público e ao Judiciário mitigar, o que se tem, diariamente, tentado aqui neste nosso rincão, a par do descaso e do desconhecimento de quem deveria resolver e parece não se importar.

Parabéns pelo teu trabalho e agradeço-te por todos os dias lutar conosco através das tuas colunas. Alessandra Moura, promotora de Justiça do Alegrete".

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