terça-feira, 25 de setembro de 2007



25 de setembro de 2007
N° 15377 - Liberato Vieira da Cunha


Sagração de primavera

Um dos direitos dos primogênitos é o de armazenar memórias de seus irmãos. Em relação aos meus, poucas serão mais doces do que a lembrança de seu acalanto.

As crianças pequenas choram por todas as razões do universo - e desconfio que a principal é terem sido exiladas na Terra. Mas quando maior e mais audível era o pranto de meus irmãos, quando nem os afagos do pai, nem os carinhos da mãe pareciam poder apaziguá-los, a receita era chamar a avó.

Meu irmão e eu fomos dotados de uma nonna autêntica, dessas nascidas na Campania, a mais bela das regiões da Itália. Bastava que ela tomasse em seus braços e em sua ternura um dos bebês e começasse a entoar mansamente canções como Santa Lucia para que o choro cessasse, cedendo lugar a sonhos tranqüilos, iluminados de mar e luz.

Lembrei disso o outro dia. Tendo ido visitar uma linda e pequena paciente do Moinhos de Vento, encontrei-a não só bem cuidada e já refeita, como aquietada por um coro que me pareceu de anjos. Não eram anjos, logo descobri. Eram as irmãs que percorriam os corredores do hospital em uma bela, móvel berceuse.

Conheço há muito esses suaves recitais. Quando meus filhos nasceram, no mesmíssimo Moinho de Vento, a cada entardecer éramos todos abençoados por iguais concertos.

A única diferença era a de que, naquela época, o programa era todo ele em alemão. Hoje se admitem até cirandas, como aquela que fala de Lia, a da Ilha de Itamaracá, um dos mais lindos exemplos do cancioneiro pernambucano.

Senti-me outra vez embalado por antigas harmonias. E à saída me esperava uma esplêndida lua nova, creio que também ela encantada com os acordes que escalavam os céus desta inauguração de primavera.

Ainda que com o frio do inverno que teima em não ir embora que a terça-feira seja ótima a todos nós.

Nenhum comentário: