sábado, 22 de setembro de 2007

Arte no pratinho



22 de setembro de 2007
N° 15374 - Cláudia Laitano

Arte no pratinho

O símbolo máximo da assimilação de uma determinada manifestação artística pelo senso e o gosto comum é virar pires. Pôster, camiseta, cartão-postal, calcinha (sim, não há o que não haja...) tudo isso são etapas anteriores no processo de transformação de uma obra de arte em mercadoria. A última fronteira, me parece, é o pratinho.

Esse objeto doméstico universal, que tanto pode ser cotidiano quanto decorativo, comoventemente simples ou de uma sofisticação retumbante, talvez seja a metáfora perfeita para a arte: dependendo da necessidade do freguês, é de uma essencialidade absoluta ou de uma sólida inutilidade.

Museus do mundo inteiro vendem pratos que estampam suas obras mais famosas, e já tem até artista que nem sequer passa pelos formatos tradicionais: cria direto para a louça de mesa.

Você já deve ter visto obras de Romero Britto, por exemplo, em formato de almofada, xícara, tapete de banheiro - além, é claro, do inescapável pires.

E se o pratinho nem sequer for comprado, mas entregue de brinde junto com a última edição da revista Caras melhor ainda. Arte que não se precisa encomendar, pagar ou sequer olhar com atenção: vem de brinde, basta comer em cima, espalhando migalhas sobre o rosto da Monalisa ou entre os girassóis devidamente reconhecidos de Van Gogh.

O caminho entre a obscuridade e o fulgor da porcelana às vezes é lento. Na verdade, a maioria dos artistas sequer chega ao pratinho de butique, por terem nascido na época ou no país errado ou simplesmente por nunca terem encontrado um público disposto a admirá-lo - e muito menos a guardá-lo, entre o liquidificador e a torradeira, dentro do armário da cozinha.

Quando chega ao pires, a obra não fica melhor nem pior. O pratinho é apenas a prova material de que aquele artista recebeu algum tipo de aval, seja da crítica, do mercado ou do grande público.

O que um dia choca, agride, perturba pode estar sob a xícara de leite já na década seguinte. Às vezes é só uma questão de tempo e de transformação do olhar. Às vezes, basta ao artista com ambições prateleiras mastigar o que já foi feito antes e devolver para consumo rápido e tranqüilo, sem estranhamentos inconvenientes.

Muita gente acredita que a única arte que conta é aquela que já virou, ou pode virar, estampa de pratinho - o que exclui boa parte das coisas mais interessantes que tem sido feitas nos últimos anos.

A sensação que eu tenho quando ouço alguém reclamando que as obras expostas na Bienal "não fazem sentido" é de um dó sem tamanho (isso quando esses comentários não vêm em tom de arrogância tosca, porque arrogância, em qualquer contexto, não dá dó, dá vontade de sair correndo).

Não porque todo mundo deva gostar ou se interessar por arte contemporânea, mas porque exercitar a capacidade de olhar o mundo sob diferentes perspectivas, em um evento do porte da Bienal do Mercosul, é um privilégio que poucas cidades do mundo têm - e nos cabe, no mínimo, conceder ao que não nos comove o benefício inteligente da dúvida

O tempo que se perde reclamando a falta de alguma coisa que muitas vezes nem se sabe bem o que é (beleza? sentido? mensagem?) poderia ser muito melhor usado abrindo os olhos e a imaginação para algo que nem sempre nos é servido na bandeja. Ou no pratinho.

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