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sábado, 15 de setembro de 2007
Quando éramos trouxas
Cláudia Laitano
15/09/2007
Quando éramos trouxas
Um dos melhores filmes do ano está escondidinho dentro da invencível programação da mostra de cinema do Bourbon. Como a exibição de documentários brasileiros é ainda mais errática do que a dos filmes nacionais de ficção, não dá para dormir no ponto:
Santiago, de João Moreira Salles, passa ainda hoje, terça e quinta no Arteplex - e depois, sabe Deus quando.
Santiago é um personagem real tão fascinante quanto inverossímil, e boa parte do interesse do filme vem do gosto com que ouvimos esse homem de frases grandiosas e gestos histriônicos desfiar histórias fantásticas sob o comando da voz do diretor
não por acaso, seu antigo patrão, na altura das entrevistas ainda um jovem e desconhecido projeto de cineasta. Mordomo dos Moreira Salles durante mais de 40 anos,
apaixonado por boxe, ópera e arranjos florais, Santiago tocava Beethoven ao piano, rezava em latim e colecionava informações sobre famílias reais - ao mesmo tempo em que era um trabalhador doméstico convenientemente treinado para ser eficiente e invisível.
(Existirá ainda um mordomo como Santiago? É uma das coisas, a menos importante talvez, que nos perguntamos na saída do cinema.)
Quando o diretor o procura para produzir um documentário que originalmente contaria a história da família Moreira Salles, no início dos anos 90, Santiago já está aposentado e mora em um apartamento modesto - que o diretor faz questão de tornar ainda mais sufocante, filmando o entrevistado no desconforto de uma cozinha minúscula ou, mais incrível, sentado no banheiro.
João Moreira Salles não soube o que fazer com o material na época, e as entrevistas ficaram guardadas durante mais de 10 anos. Até ele voltar aos rolos de filme e perceber que tinha ali um documentário diferente daquele que tinha imaginado aos 30 e poucos anos.
E é aí que começa a genialidade de Santiago, que deixa de ser apenas um bom documentário sobre um bom personagem e passa a ser outra coisa - uma reflexão sobre o que é falso e o que é verdadeiro em um documentário, um ensaio sobre a passagem do tempo talvez. Mas tudo isso pode soar vago ou pretensioso demais.
Santiago é antes de mais nada o produto de uma profunda autocrítica. Um filme inteiro feito sobre uma sensação que todo mundo já teve, ou deveria ter de vez em quando. Aquela de olhar para trás, para um determinado período da vida, e pensar: "Como eu era trouxa".
O jovem diretor que comanda com ruidosa surdez as entrevistas do ex-empregado é mesmo muito tolo - arrogante, maneirista e aparentemente distraído para a qualidade humana do personagem que tinha em mãos.
Mas não é com um prazer sádico que assistimos ao documentário, mas com a constrangida consciência de que é preciso ter vivido algumas coisas e ter perdido outras tantas para perceber como a gente pode ser trouxa de vez em quando - por mais generosos e inteligentes e atentos ao que se passa que a gente se considere a maior parte do tempo.
Santiago nos lembra que deixar de perceber algumas coisas, entender outras de maneira completamente errada ou simplesmente perdermos uma grande chance para ficarmos em silêncio são erros que todos cometemos - até os brilhantes e sofisticados Moreira Salles.
O mordomo está morto, e a entrevista nunca será refeita. Mas a oportunidade de olhar para trás, corrigir a rota, admitir velhas tolices para, talvez, cometer novas, mas de outros tipos, curiosamente, sempre oferece algum consolo. E é a melhor notícia que a passagem do tempo pode nos trazer.
claudia.laitano@zerohora.com.br
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