sábado, 22 de setembro de 2007



23 de setembro de 2007
N° 15375 - Moacyr Scliar | 23/09/2007


A criança que simboliza o Brasil

Nossa história sempre foi marcada pela dissimulação, pela ambição, pela mentira - e também pela miséria, ignorância e sofrimento

No affair Renan Calheiros, houve um aspecto que passou despercebido, e exatamente por isso representa um aspecto positivo, talvez o único aspecto positivo dessa história toda.

Trata-se da menina, da filha de Renan Calheiros e de Mônica Veloso. Pouco se sabe dela - felizmente. E o fato de que pouco se sabe dela constitui-se neste aspecto positivo.

Seria muito ruim, seria um desastre, se essa criança se tornasse o foco das atenções. Isso só não aconteceu por conta de um acordo tácito, que revela, antes de mais nada, um apreciável grau de maturidade de nossa mídia.

Uma mídia que aliás foi acerbamente censurada pelos defensores de Renan Calheiros. Ficou claro que, para alguns deles, enfrentar os meios de comunicação era uma questão crucial - a questão de saber quem manda. Um equívoco, certamente, mas a política não raro é feita desses equívocos.

De qualquer maneira, essa criança, quando crescer, terá de enfrentar uma pesada carga de recordações. Para começar, nasceu de um caso extraconjugal. Passou a época em que o casamento era aquela inviolável, ainda que não raro hipócrita, instituição.

Mas uma ligação desse tipo, que inevitavelmente envolve um grau de dissimulação, quando não de franca mentira, cobra seu preço. E, não raro, o preço é pago pelos filhos dessa união. Aliás - que união, hein? Que união. De um lado, um homem que, no mínimo, opôs seu mandato à indignação popular.

De outro lado, uma mulher que transformou seus 15 minutos de fama - aqueles 15 minutos de fama aos quais, segundo Andy Warhol, todo mundo um dia terá direito - numa oportunidade para fazer aquilo que está sendo rotulado como "negócios", e que incluem posar nua para fotos. Um contraste, aliás: o nu de um lado, do outro, a franca exibição e a óbvia dissimulação.

De certa forma esta criança simboliza o Brasil, um Brasil que paga pesado tributo aos erros do passado. Nossa história foi marcada, de um lado, pela dissimulação, pela ambição, pela franca mentira, e, de outro (e esse sempre foi o lado maior) pela miséria, pela ignorância, pelo sofrimento.

Havia aqueles que desfrutavam e havia aqueles - a imensa maioria - que pagavam o pato. E faziam isso em silêncio, na obscuridade. Carnaval e futebol à parte, o Brasil sempre era um país que vivia sob o signo de Saturno, o pesado planeta que simboliza a melancolia.

Mas as crianças crescem, e os países amadurecem. Crescer é, para as crianças, uma fonte permanente de conflitos, na medida em que a crua realidade se revela.

Quando, por exemplo, alguém se aproxima de uma criança e pergunta: "Você é que é a filha daquele cara?". Sim, a menina é a filha daquele cara e é a filha daquela mulher. E não pode deixar de ser a filha daquele cara, a filha daquela mulher - são, para o bem ou para o mal, os pais dela.

É algo que terá de entender e elaborar. Entender e elaborar são as pré-condições básicas para o amadurecimento. Indignar-se, protestar é importante, e o número de cartas de leitores protestando contra a absolvição de Renan Calheiros foi enorme.

Mas isso é apenas o primeiro passo. O passo seguinte é responder à crucial pergunta: por que tais coisas acontecem em nosso país? O que pode ser feito para evitá-las?

A menina cujo nome (felizmente) não sabemos um dia terá resposta para estas perguntas. Ela crescerá num país melhor do que aquele que herdou do passado.

Um dia ainda rirá de tudo isso? Certamente não, não dá para rir de tudo isso. Mas mesmo que um sorriso tímido ilumine seu rostinho teremos motivos de sobra para acreditar no futuro.

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