segunda-feira, 24 de setembro de 2007


Juremir Machado da Silva

O PASSAGEIRO

Esta história eu já contei. Conto novamente por uma única razão. Eu a sonhei inteira pela trigésima vez. Rafael Vidal desembarcou em Palomas em 21 de abril de 1973.

Desceu do trem no único momento de uma tarde chuvosa em que o sol varou as nuvens e lambeu o campo ao lado da estação, projetando uma nesga clara. Vestia-se todo de branco, exceto por um lenço de cor indefinida que lhe escondia o pescoço, e anunciou-se ao telegrafista na busca de um quarto.

Era alto, moreno, cabelos desgrenhados e olhos muito verdes. Como única bagagem, uma bolsa de couro a tiracolo. Aparentava 30 anos. Era um homem bonito, apesar da barba por fazer e do cansaço no rosto anguloso. Parecia mover-se em câmera lenta. Muito lenta.

Antes de entrar na estação, Rafael ficou contemplando o trem desaparecer no Alto Grande, entre os eucaliptos do horto, cujas silhuetas se alongavam para o céu como agulhas ligeiramente vergadas pelo vento.

Depois, já com uma indicação de endereço, atravessou a vila com um passo oscilante, mas contínuo. Foi observado por quase todos os moradores do povoado.

As moças solteiras grudaram-se nas vidraças para vê-lo. Os homens ergueram a cabeça para avaliar o estranho que caminhava absorto. Passou em frente ao bar do Leto, onde cinco gaúchos de bombacha e alpargatas bebiam cachaça pura em copos de um vidro fosco. Todos se calaram.

Durante uma semana, num quarto no fundo do pátio da casa do Nico, Rafael se manteve alheio ao fato de que todos só falavam nele. Passava os dias lendo e corrigindo um manuscrito numa língua estranha, que tanto podia ser o árabe quanto outra qualquer.

Todas as tardes, vestia a sua roupa branca para ir à estação ver a chegada do trem de passageiros. Em seguida, fazia a sua lenta caminhada de volta, despertando a atenção das moças, dos homens e, principalmente, das velhas.

Rapidamente surgiram boatos e certezas sobre a identidade do visitante: um assassino foragido, sussurravam os homens; um tupamaro, diziam as velhas; um solitário fugindo de um grande amor, suspiravam as gurias, fechando revistas de fotonovelas e abrindo o coração.

O efeito Vidal foi imediato: Sônia, aos 17 anos, a mulher mais bonita de Palomas, se apaixonou por ele. Isabel, a solteirona esperançosa, também.

O ódio dos homens não tardou. Tentaram atrair Rafael a uma conversa. Trocou algumas palavras, discreto, mal umedecendo os lábios na canha. Só se soube que era brasileiro, falava com voz arrastada e sorria nas perguntas muito diretas.

'Tu és um tupamaro?', veio o Firmino. 'Quantos matou?', quis saber o Leto, dono do bolicho, que se julgava no direito à ficha completa dos fregueses, poder disputado com as velhas de Palomas, mais informadas e mais cruéis.

Foi no dia 2 de junho que tudo aconteceu. A velha Marciana deu o alarme: havia um corpo balançando preso a um galho de cinamomo no fundo da casa do Nico.

Não eram 8 horas da manhã e uma brisa muito agradável soprava. Os 300 habitantes de Palomas - com exceção dos cinco doentes que já não podiam sair da cama e dos que moravam mais longe - correram para a rua de baixo.

Recebiam informações desencontradas: o enforcado era um homem todo de branco; era uma mulher ainda muito jovem; era um desconhecido descido do trem de carga na madrugada anterior; era um morto cujo retrato todos conheciam do túmulo bem na entrada do pequeno cemitério.

O morto era mesmo Rafael. Ninguém ficara para chorar por ele. Na mesma tarde, após a Polícia se encarregar do corpo, Nico embarcou no trem de passageiros rumo a Livramento.

Vestia-se todo de branco, tinha os olhos mais verdes do que nunca e expressão de imensa fadiga. Sobre o caixote que servira de mesa-de-cabeceira ao visitante ficara o manuscrito. Talvez escrito em árabe, talvez em aramaico...

juremir@correiodopovo.com.br

Ótima segunda feira e excelente semana para todos nós.

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