quinta-feira, 27 de setembro de 2007



27 de setembro de 2007
N° 15379 - Nilson Souza


O homem-foca

Há poesia no futebol. Sim, esse jogo de pontapés é também um repositório de metáforas nem sempre perceptíveis. Agora mesmo, quando toda a arte do nosso mais apaixonante esporte parecia ter migrado para a Europa, surge uma desafiadora novidade: o drible da foca, inventado pelo baixinho Kerlon, atacante do Cruzeiro de Minas.

Para quem não acompanha futebol, explico do que se trata. O jogador levanta a bola e a conduz com a cabeça, correndo na direção do gol adversário sem deixá-la cair.

Cria uma dificuldade inesperada para os marcadores, que não sabem o que fazer para quitá-la, sem precisar apelar para a ignorância como fez o lateral Coelho, no jogo que deu evidência à jogada.

Equilibrar a bola na cabeça não é a coisa mais difícil do mundo. Qualquer garoto de subúrbio faz isso. O que Kerlon fez de diferente foi conduzi-la ousadamente entre adversários, provocando espanto, aplausos e também indignação.

Acabou dividindo o mundo do futebol entre aqueles que consideram a jogada uma obra de arte (felizmente, a maioria) e aqueles que a consideram uma manifestação de menosprezo aos adversários menos habilidosos (uma minoria, mas truculenta).

Ora, o futebol é um jogo de enganos. Consiste, fundamentalmente, em iludir o oponente, em colocar a bola fora do seu alcance, em deixá-lo para trás, em fazer o que o outro tenta evitar. Por isso, a habilidade e a inteligência costumam levar vantagem sobre a força bruta.

Não é incomum que atletas de pouca estatura, pequenos e frágeis, consigam superar brutamontes. O que vale é a esperteza, a sadia esperteza de iludir o rival, como o prestidigitador ilude os sentidos dos espectadores de sua mágica.

Quando o truque é descoberto, perde a graça.

Lembram-se daquele Mister M, que se tornou mundialmente famoso por desvendar os segredos do ilusionismo? Ele era um legítimo estraga-prazer. Chegou mesmo a ser odiado pelos mágicos. São assim os marcadores que agem com violência contra os artistas da bola.

Mas não acho que eles devam ser odiados. Têm é que ser driblados. O melhor antídoto para a truculência é expô-la ao ridículo. Sempre é possível inventar um novo truque que o espertalhão vai quebrar a cabeça para desvendar.

Por isso também aplaudo o homem-foca, que acrescentou um lampejo de poesia ao nosso pobre futebol, tão desfalcado de craques e de criatividade.

Sei que tem gente que torce o nariz, mas estou convencido de que a vida só tem encanto quando alguém sai da rotina e provoca perplexidade, sorrisos ou até mesmo a indignação de quem prefere a mesmice das coisas.
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Ainda que com chuva que a quinta-feira seja ótima para todos nós.

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