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terça-feira, 25 de setembro de 2007
25 de setembro de 2007
N° 15377 -Cláudio Moreno
O mito do gaúcho
Quando vejo essas discussões inflamadas sobre a autenticidade do gaúcho e a sua idealização, não posso deixar de pensar no que aconteceu a Enéias, depois da queda de Tróia.
Os gregos destruíram a cidade com tamanha selvageria que nenhum troiano da nobreza foi poupado - nem Príamo, o velho rei de cabelos brancos, nem Astíanax, seu neto, que era apenas um bebê de colo.
Enéias só escapou porque era filho de Afrodite, a deusa do amor, que o protegeu durante toda a guerra e exigiu dos deuses a garantia de que ele sobreviveria ao massacre final.
Na noite fatídica, quando os gregos já corriam pelas ruas da cidade incendiando as casas e executando cada troiano que caía em suas mãos, Afrodite apareceu para Enéias e disse que ele devia fugir para o monte Ida, onde estaria a salvo.
Sem perder um segundo, ele fez o pai, que era entrevado, subir em seus ombros, deu a mão a Ascânio, seu filho adolescente, e se lançou em direção à saída da cidade, evitando, nas ruas abrasadas pelas chamas, as ferozes patrulhas inimigas.
De longe, já protegidos pela sombra das árvores do monte Ida, os três viram, com lágrimas nos olhos, centenas de soldados reduzirem seu palácio a cinzas.
Ora, apesar dos gregos terem vencido a guerra, os leitores de todas as épocas sempre se identificaram mais com os troianos, grandiosos mesmo na derrota.
Muitos povos alegaram ser continuadores daquela linhagem ancestral de homens admiráveis. Os romanos, aliás, viram aí uma forma de conquistar um passado que estivesse mais à altura do seu destino histórico.
Enquanto Roma foi uma cidade pequena, contentou-se com o mito de Rômulo e Remo, os dois gêmeos amamentados pela loba; contudo, ao se transformar num gigantesco império, precisava de uma origem mais adequada, cabendo a um poema épico, a famosa Eneida, de Virgílio, a tarefa de fornecer uma versão mais gloriosa:
depois de reunir os troianos sobreviventes, Enéias teria procurado refúgio na Itália, estabelecendo-se no Lácio, onde uma descendente sua teria dado à luz dois meninos gêmeos, Rômulo e Remo - e pronto!
Roma agora podia se sentir como a sucessora vitoriosa de Tróia. Não era uma mentira; como sempre acontece nesses mitos fundadores, a imaginação criativa tinha completado uma lacuna do relato histórico.
Pisamos aqui naquela faixa impenetrável que fica entre a História e a ficção. Assim como os romanos, a gente do Rio Grande fez instintivamente uma seleção de experiências, valores, modelos e imagens guardadas na memória, construindo em torno do gaúcho um relato sobre a origem deste sentimento difuso, mas inconfundível, de pertencermos a um mesmo grupo.
É um mito, e é exatamente por isso que ele nos une.
No sábado, debaixo da chuva, perto da ponte, três gaúchos passaram por mim, cavalgando a passo, em silêncio, acompanhados por uma cachorrada miúda. Fiquei com inveja, confesso: todos ali, homens e animais, olhavam na mesma direção, sempre para frente; ao menos pareciam saber de onde tinham vindo - e para onde estavam indo.
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