segunda-feira, 24 de setembro de 2007

24 de setembro de 2007
N° 15376 - Paulo Sant'ana(Ricardo Chaves - Interino)

O desafio do pão

Chega ao fim a Semana Farroupilha. Depois de tanta demonstração de orgulho, tanta bravura para enfrentar... a chuva e a lama, quando se faz de tudo para preservar as nossas mais caras tradições, eu, comovido, tento fazer esforço para manter o senso crítico e, num acesso de lucidez, sou obrigado a ouvir minha consciência. Ela me diz:

- Cultura é algo mais que um acampamento à beira de um rio. Cultura vem de looonge, como dizia o "velho", que, infelizmente, já morreu. Ela se manifesta em hábitos simples do cotidiano. Como, por exemplo: fazer e comer pão.

Taí um quesito de índice civilizatório que aqui é um problema. Em Porto Alegre, o pão é péssimo. Tudo bem. Alguém vai saltar e dizer: conheço uma padaria que vende um pão ótimo! Pode ser.

Mas o fato de existir um bom restaurante numa cidade (e tem, pelo menos um, em quase todas) não significa que se possa dizer que, nessa cidade, se come bem. As virtudes devem estar disseminadas para que determinado ponto se destaque. Aprender e fazer direito alguma coisa pode levar tempo.

Talvez seja apenas neurastenia própria da idade (já fiz 56 anos), ou ainda pode ser que eu ande meio sem paciência, mas levando em conta que o pão surgiu na Mesopotâmia há 12 mil anos, e os egípcios já os levavam ao forno 7 mil anos atrás, acho que já dava para termos aprendido.

Porto-alegrense, morei no Rio, em São Paulo (duas vezes) e em Brasília em função de minha atividade profissional. Comparando, a cidade onde nasci oferece aos seus cidadãos o pior pão do Brasil.

Nem vamos falar do resto do mundo. Ou vamos. Para citar pelo menos o Vietnã, país pobre que, não sei se por influência francesa, tem um pão ótimo que é vendido primitivamente, uns sobre os outros, empilhados nas calçadas.

Aqui na minha terra, apesar da forte presença da imigração italiana, a arte de fazer pão italiano não veio junto. Não é só o formato redondo que caracteriza esse tipo de pão.

A casca é mais dura, a massa mais pesada e muito saborosa. Tenho pena de quem acha que faz ou come pão italiano por aqui. Se pensam que estou exagerando, procurem experimentar o pão italiano das padarias São Domingos ou Basilicata, ambas em São Paulo.

Agora, se eu quisesse complicar, ou fosse muito exigente, estaria em busca do croissant perfeito ou, quem sabe, de saborosos brioches, mas não. Estou falando de pão. Aquele comum, que antigamente chamávamos de pão dágua.

Meio quilo. Quarto de quilo. Aquele que se fazia na praia e que chegava a nosso chalé de Capão da Canoa já sem o bico, que era consumido enquanto caminhávamos sobre as calçadas de grama da Avenida Paraguassu.

Evocações? Nada comparável às madeleines de Proust, a quem mal conheço. Apenas memórias, relativamente recentes, que nos advertem que, se sabíamos, desaprendemos. Pior. Tudo indica que perdemos as referências. Mas tem os que se acham espertos.

Para driblar a lenda (ou a prática) segundo a qual os pães mais tostadinhos assim estão porque são sobras que fizeram uma segunda visita ao forno, pedem, sem a menor cerimônia - os mais clarinhos...

A massa quase crua. Consolidam uma versão, e um paladar, tão exclusivamente local quanto equivocado: o carboidrato mal passado. Ora, pão é assado, vai ao forno, portanto, tem de ser dourado por fora, casca crocante, massa porosa e leve.

Bem diferente de isopor ou de picanha. Não quero que ninguém se sinta ofendido, mas, como gaúcho orgulhoso que sou, também prezo determinados valores. Como a franqueza, por exemplo.

E sendo assim: pão, pão, queijo, queijo.

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