sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Eu vi o gaúcho



21 de setembro de 2007
N° 15373 - Paulo Sant'ana(Cyro Martins Filho - Interino)


Eu vi o gaúcho

Para "Seu" Beto, onde estiver Sou de Uruguaiana.

Antes que me acusem de tirar proveito do canto - de sereia, convenhamos - alegretense ("... churrasco de cordeiro mamão/Churrasco de cordeiro mamão...") que afastou o titular desta coluna, aviso: ser de Uruguaiana tem a ver com o que vou escrever.

Não é provocação à nossa histórica "rival". É que sou de Uruguaiana e me chamo Cyro Martins.

Mas me chamo Cyro Silveira Martins Filho. Nome que faço questão de assinar completo para evitar uma confusão comum.

Muita gente pensa que sou filho do escritor e psiquiatra Cyro Martins. Não sou. Sou filho do coronel de Exército Cyro Silveira Martins. O que isso tem a ver com o que vou escrever?

Tem o seguinte: eu morei até meus 11 anos em Uruguaiana.

No pedaço de terra que meu avô materno tinha, meu pai fez questão que eu e meu irmão aprendêssemos o que todo guri do campo aprende. Desde achar ninho de quero-quero até montar "de em pêlo".

Só com um peleguito no más, quando havia. E o que interessa, senhores e senhoras - e até à senhorita ali, no canto, serena - é que lá eu os vi. Os gaúchos existiam. E eu os vi.

Homens que, pelo estoicismo, a coragem, a solidão, a seriedade, a destreza a cavalo, e os longos silêncios poderiam ter sido parte de qualquer das hordas que conquistaram o mundo.

Homens de humor contido. De pouco sorrir com a boca, de sorrir de cantos de olhos. Dos mais diversos tons de pele e de cabelos.

Homens que comiam pouco e trabalhavam muito.

Que acordavam em horas que vocês não acreditariam, para uma lida tão brutal que dificilmente não teria forjado peleadores.

Homens de código de honra e de leis simples. Estou idealizando? Em parte, certamente. Faz tanto tempo.

Mas eu vi esses homens pealando boizitos furiosos para castrar.Sujeitando a monstruosa massa de força que é um touro - ainda mais se touro alçado - para "curar", em imensos rodeios.

Beduínos, cossacos, charros, caubóis, huasos, tártaros, todos eles, os heróis de meus livros e gibis, estavam naqueles homens com quem convivi, guri admirado de seus feitos diários, de sua humildade diante das próprias força e coragem, de sua compreensão da natureza.

Querendo ser um deles quando crescesse.

Eu posso dizer que: "Yo he conocido esta tierra En que el paisano vivía Y su ranchito tenía

Y sus hijos y mujer...Era una delicia el ver Como pasaba sus días."

Que se dane a esquerda burra, que não entende poesia, não entendeu Cyro Martins, não entende Dom Segundo Sombra e nunca vai entender esse trecho de Martín Fierro.

Eu vi esses homens.

Já no estertor, como representantes de um tempo de laços e castração a faca e domas de bestas furiosas a campo aberto.

Eu os conheci já como Cyro Martins (o escritor, não meu pai, nem eu) os anteviu e os descreveria.

Centauros quase a pé - e que se dane a direita burra que não entende poesia, não entende história e não entendeu ainda o que Décio Freitas escreveu... em 1944: sobre Porteira Fechada, um dos livros de Cyro Martins.

"Como os nossos caudilhetes, vivos ou potenciais, devem estar pensando nas magníficas possibilidades que lhes oferecem os rebanhos humanos que hoje erram pela campanha tocaiados pela miséria, sem ocupações!"

Senhores e senhoras - e também a senhorita ali, serena como uma República de Veneza: estão deixando este mundo, para sempre, os herdeiros daqueles homens sem sobrenomes pomposos, às vezes sem sequer sobrenome. Que viveram apenas para gerar descendência que viesse a ter vida digna.

Só que o mundo não percebe. Eu? Pois é isso: eu sou um cara de sorte. Por ter nascido em Uruguaiana, eu vi o gaúcho.

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