sexta-feira, 14 de setembro de 2007

O Brasil invisível



David Coimbra
14/09/2007


O Brasil invisível

Quando o último uivo saiu da última garganta a vaiar Lula, na abertura do Pan, comecei a cevar uma idéia.

A de que Lula é o mais importante presidente do Brasil desde Getúlio Vargas.

Naquela noite, a vaia serviu-me de luz. Escrevi a respeito - que quem repudiava o presidente era a classe média, branca, bem alimentada, assalariada, pagadora de impostos. Sei que era. Estava lá, e circulei por todo o Maracanã, e vi.

Escrevi também que a vaia era legítima. E é. Mas essa mesma classe média enfureceu-se com o que leu. Compreensível: quem vaia não aceita ressalvas. Quando se chega à vaia é porque o tempo das considerações já passou.

De fato, Lula não faz um bom governo para quem vive acima da dita linha de pobreza. Mas também é fato que Lula está demonstrando ao Brasil, na prática, o que o Brasil é.

Afinal, como um presidente que é humilhado publicamente por 60 mil pessoas, que é açoitado semanalmente pelas revistas de informação, que tem um governo sitiado por denúncias, que é responsável por uma crise aérea que redundou em morte de centenas, como esse presidente pode amealhar 60% de aprovação nas pesquisas de popularidade?

A resposta óbvia é que quem vaia Lula são, exatamente, os que sofrem com a crise aérea, com a carga de impostos, com a CPMF, com a corrupção. São os que lêem revistas e jornais. São, enfim, a minoria. Os 40% das pesquisas.

Os outros 60%, não. Aos outros 60%, pouco lhes interessam as mazelas do governo. Não faz diferença para eles. Nenhum governo jamais fez diferença para eles, até então. O que faz diferença são os parcos reais que eles recebem a cada mês dos programas de assistência, o Bolsa-Família, o Bolsa-Escola.

Aí está. Um projeto singelo, quase simplista, quase assistencialista, é também quase redentor para a maioria da população. Cento e setenta reais por família são o suficiente para fazer com que as pessoas... vivam.

Essa a importância de Lula. Pela primeira vez, em 50 anos, um presidente não fala em primeiro fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo. Pela primeira vez, desde que Getúlio meteu uma bala calibre 32 no coração, um presidente destina uma fatia do bolo para quem não tem nada a dar em troca, a não ser o voto.

Esses miseráveis que sobrevivem com o Bolsa- Família, eles nunca existiram para as estatísticas ou para os economistas. Eles são subprodutos do regime escravista mais tardio do Ocidente.

Eles sempre viveram apartados, primeiro nas senzalas, depois nas favelas e nas vilas, sem água, sem esgoto, sem certidão de nascimento.

Nunca ninguém sequer pensou neles, até agora. Eles estavam por aí, invisíveis aos milhões. Hoje, há duas formas de percebê-los. Pela violência urbana, ou pela popularidade de Lula.

O que Lula está fazendo não é o melhor que se poderia fazer por eles. Mas Lula, ao menos, está fazendo. Se a classe média e as chamadas elites compreenderem isso sem amargura e sem ressentimento, e se houver alguma reflexão desapaixonada a respeito, talvez o país consiga ir além do assistencialismo do governo.

Talvez se estabeleça um projeto sério de educação em regime integral, que iria alimentar o corpo e o espírito dessa gente. Que iria transformá-los de ex-escravos abandonados em cidadãos incluídos. Talvez. Mas, antes, há que se compreender a importância de Lula. Lula apresentou o Brasil miserável ao Brasil.

david.coimbra@zerohora.com.br

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